OBSERVANDO DAQUI... >> Carla Dias


Confisca cinco minutos do tempo de sempre para investir em sonho novo. Cético que é, pega o agnosticismo alheio emprestado para reverberar fé no que está quase para dar último suspiro. Não se rende às covardias que exigem coragem para cometê-las, mesmo as tais sendo abrasadoramente sedutoras. Desprende-se do emaranhado de dramas ao desviar a atenção do telejornal. Não gosta da maneira como sequestram a verdade.

Em dia comum, faz sua parte: trabalha, estuda, constrói pormenores significativos para sua biografia. Alimenta segredos, ciente de que chegará o dia em que terá de revelá-los, ainda que não haja o desejo de fazê-lo. Mas também observa o que é simples, desenrola-se com o passar das horas do dia, desmaia com o sol. 

Frequenta jantares em casas de amigos, de amigos de amigos, de desconhecidos eleitos amigos transitórios, detentores de um magnetismo embriagante. Ele prefere os de magnetismo que não consegue desvendar.

Paga contas, mas não promessas. Nunca foi bom em calcular até quando resolver isso ou aquilo. Mudar isso ou aquilo. Seus defeitos se misturam às suas qualidades, ao menos é o que dizem aqueles que, por escolha ou acaso, enredaram-se na trama das suas conquistas.

O mundo o intriga. O mundo e suas pessoas diversas e acontecimentos sortidos. Seus vulcões em erupção, suas águas doces, salgadas, em falta nos canos de casas escondidas em remota geografia. Conheceu, neste ano mesmo, neste presente, neste agora desordenado, um senhor que nunca tomou banho de chuveiro. Entretanto, quase morreu de inveja ao escutá-lo contar como se banhava em rios que ele nunca visitou nem mesmo nos mapas.

Há dias em que imaginar o que o mundo tem a oferecer quase o leva à loucura. Ambiciona compreender as intenções do universo, este sujeito oculto, habituado a observá-lo sem oferecer a gentileza de ser completamente visto, apesar da nudez da sua infinitude. 

Faz sua parte: sorri por achar graça, gentileza, diplomacia. Chora nos braços da escuridão dos cômodos de sua casa, que chamará de sua somente depois de pagar a última parcela do financiamento. A mãe avisou, o pai endossou, o irmão garantiu: 280 parcelas não deixam espaço para o desfrutar alegria. Garante que ninguém tenha que lamentar por ele ou ser vítima de suas escolhas. 

Vive de furtar tempo do despertador para sonhar uns minutos mais com as alegrias inventadas. Mastiga a comida, bebe gole a gole, respeita o limite de velocidade. Em dias mais abrasivos, acelera no aprofundamento e sente falta. É quando seu corpo dói uma dor que relaxante muscular não resolve, nem prece, confissão, declaração de amor ou de ódio, tampouco ignorância. 

É quando o mundo o toca: soco no estômago. Mostrando o quão longe ele está de compreender distâncias. E aponta como ele deixa escapar oportunidades que nem sabia que almejava, apesar de estar ali, à espera delas.

Autodeclara-se inocente, entre uma dose de receio e outra de desamparo. Então, culpar o universo, que permite a ele morar em seus poros, mas não beijar suas faces. A aprender com seus mistérios e espantar-se com suas verdades.

Envereda-se pelo mundo, usando as estradas dos telejornais que boicotou na edição da tarde. Na noite, silêncio fala tão alto, que ele prefere se perder nas manchetes ditadas pela voz treinada do âncora. Durante os comerciais, compra – imaginariamente – casas, móveis, roupas, carros. 280 parcelas que preenchem seu tempo de desamparo.

Imagem: © Leonora Carrington

carladias.com

Comentários

Zoraya Cesar disse…
"Vive de furtar tempo do despertador para sonhar uns minutos mais com as alegrias inventadas. "

Carla Dias, Carla Dias, o que fazer com a tontura que suas frases provocam? Seus textos deviam ser precedidos por; 'Cuidado: abismos insondáveis o esperam nas linhas desse texto."
Carla Dias disse…
Zoraya, minha cara, as minhas frases adoram a sua gentileza. :)

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