HOME OFFICE >> Albir José Inácio da Silva

 

              

                                                                             Março

 

O homem certo no lugar certo - era assim que se enxergava o Plínio no trabalho e na vida. Pelo menos até ser atropelado pela “prisão domiciliar”, que era como chamava o isolamento promovido pelos “maricas” que queriam parar o país.

 

Apesar do medo que assombrava o planeta e da ojeriza que sente pelo “fique em casa”, Plínio não podia dizer que não estava gostando. A mulher, companheira impecável de tantos anos, os filhos, seu orgulho, a quem nunca pôde se dedicar. Precisava recuperar o tempo com as pessoas mais importantes de sua vida.

 

Homem dinâmico que acreditava no mercado, na pátria e na produção, era também um homem prático, que se adaptava rapidamente às situações.  Ainda mais se a situação não tinha despertador, nem trânsito, nem correrias.  Compras por telefone, reuniões por vídeo, um cafezinho, conversa com os filhos, fotos antigas, nostalgia. Sim, estava gostando. E não tinha de aturar gente desagradável o dia todo.  Só caras amigas, sorridentes, porto seguro na borrasca que rugia lá fora.

 

Uma boa mulher a Marilda, reconhecia agora, passaram por momentos difíceis, nunca reclamou de nada. Bateu-lhe até um remorso pelas horas extras que fazia quase todos os dias, às vezes em lugares de pouca luz, música brega e muita fumaça.  Isso ia mudar. Aquela santa não merecia. Nem as crianças - como ainda chamava os filhos.

 

Júnior, catorze anos, boas notas, inteligente, bom de bola, sempre companheiro. Ele, pai, é que ficava devendo. Mas agora isso ia mudar. E Carol, sua princesinha, acabou de fazer quinze, doce, sorridente e estudiosa.  Tinha uma foto dos dois na mesa de trabalho.

 

Era uma vida boa: em pouco tempo de computador cumpria suas tarefas, respondia emails, expedia ordens e encerrava o expediente.  Tinha o resto do dia para aproveitar a família no paraíso do lar.

 

Na parede às suas costas, um espelho mostrava um homem de sucesso, perfil nobre, olhos inteligentes, dignidade. Repetia sempre para si e para os outros: “Um homem tem o dever de gostar daquilo que faz de si mesmo.” Ele gostava.

 

                                                                       Junho

 

Bem, mas nem tudo são flores, nem mesmo no paraíso. Plínio pensou que, como aconteceu no início, todas as tardes veria filmes e séries junto com os filhos, comentando e enriquecendo-os com os seus conhecimentos.  Três meses depois eles preferiam ficar nos quartos, em videogames e redes sociais.

 

A mulher atravessa uma fase difícil. Deve ser o isolamento, a falta das amigas, das vitrines. Acorda reclamando, assiste a cinco novelas por dia e mais os programas de fofoca. Reclama de trabalho, mas como é que tem tempo pra tanta novela, tanta fofoca e tanta reclamação?

 

E a casa, antes tão confortável, parece que está desmontando. São dezenas de tomadas e interruptores que dão defeito. As lâmpadas não param de queimar. Trilhos de cortina agora duram 24 horas e ele tem de consertar. Marilda ainda diz que é ele que não faz direito e por isso faz várias vezes.

 

Tentou voltar ao trabalho presencial. Pelo menos duas vezes por semana, pediu. Fez declaração de devoção ao trabalho e à repartição, mas não adiantou. O diretor lembrou que ele era grupo de risco - asma e bronquite. Que não aparecesse por lá.

 

                                                                      Setembro

 

Plínio tem certeza de que Marilda arrebenta o varal de propósito pra ele consertar.  Só pode ser possessão demoníaca. E olha que antes ele nem acreditava nessas coisas.

 

(Continua em 15 dias)

Comentários

branco disse…
mestre albir! já estou com pena do coitado. já ouviu falar em morte por misericórdia? faça isso, pois o que prevejo para o nosso amigo não parece nada bom.
ahhhh...sempre é bom descobrir suas nuances...
kkkk dando risada por aqui! O confinamento em família não é fácil, sei bem do que estou falando. Mas, ao contrário do Branco, não estou com pena nenhuma do Plínio. Parece um machão descobrindo a real da vida doméstica. Bem merecido ;)
Zoraya Cesar disse…
"Bateu-lhe até um remorso pelas horas extras que fazia quase todos os dias, às vezes em lugares de pouca luz, música brega e muita fumaça." HAHAHAAHAHAHA me acabando de rir aqui, Dom Albir! O "possessão demoníaca" tb foi óootimo!

haha, pobre Marilda, ter homem o dia inteiro em casa é o inferno kkkk.

Ansiosa pela 2a parte (é masoquismo q fala, né? kkkkk)
Anônima 41 disse…
kkk! parece o retrato de um monte de maridão por aí!

sabe, Albir, tem gente que vai lá nos meus textos e vem com um papo de que tá tomando medicação, que a quarentena ficou mais difícil por causa dos meus textos e da Lady Killer, que não dorme mais... Uma aula de sofrência! Tem ideia de quem é?

Ao que me parece, o senhor também fez o favor de aderir à esse drama de parte 01, parte 02. Por falar nisso, sabia que sadismo e masoquismo (é assim que fala, né? kkkk) são duas partes da mesma moeda?
Paulo Barguil disse…
Que saga a desse quarteto e de todas as outras configurações familiares nesse contexto pandêmico! Esperando, Albir, pela continuação, do seu texto e da minha jornada...
Albir disse…
Obrigado, Branco, Alfonsina, Zoraya, Nádia e Paulo, pelo incentivo de sempre.

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