CENAS DO QUE SE TEM PRA HOJE >> Sergio Geia
Nesses últimos dias ando bebendo. Uma bebida amarga, às vezes doce, às vezes uma bebida que não desce; em outras, que desce macio, que faz rir, mas sempre com o mesmo poder, de bebida que bagunça coisas lá dentro. Sinto-me um estéril, ou como se álcool estivesse a me tontear, como aconteceu numa festa, foram sei lá quantas doses.
De manhã, quando o silêncio se mistura à brisa fina, eu vou. No meio da tarde, quando o calor já sufoca, eu vou. À noite, quando tudo está acabando e o Pops já baixou a porta, eu vou. Quanto mais bebo dessa bebida mais dá vontade de beber. Mas ela é finita e não há outra fonte. Ela, a fonte, não existe mais. Morreu.
Acordei hoje com a notícia estampada em sua rede social: o câncer na mama, metástase, insensibilidade de um médico estúpido que só soube perguntar se ela tinha grana pra custear o tratamento. E ela contando tudo em detalhes, pondo a cara à mostra, sem vergonha, forte, registrando, fotografando. Uma guerreira, eu pensei, uma guerreira que não tem medo da luta, que organiza as armas e vai.
Sentei-me no sofá e procurei uma música. Queria uma, apenas uma, mas não sabia qual. Procurei, procurei, procurei. Migrei de playlist em playlist, de deserto em deserto — tenho vários. Foi então que descobri: não queria música. Poderia ficar horas procurando e minha sede não seria satisfeita por águas que não existem nesses desertos. Eu queria palavras, um colo, aconchego, um beijo molhado para dias tão maus.
A manhã tinha a tristeza de um crepúsculo. Assim mesmo como no Bandeira: “Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo / Como dói um pesar em cada pensamento! / Ah, que penosa lassidão em cada músculo / O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento.”
Ela vive num mundo que não sei onde fica. Vai pra lá, e se estabelece. Esquece da gente aqui. Não quer saber de nada, de comer, de beber, não tem mais nada pra falar, esvaziou-se de palavras. De vez em quando solta um lá-lá-lá-lá, uma música trazida de algum lugar. E quer saber de tudo, mesmo depois de saber e dizer que não entende o que falamos, ah!, deixa quieto, diz. Eu, tão sem traquejo, tão despreparado.
Mal consigo tirar a fralda, seu corpo pesa como um sofá, suas pernas tremem como copas estapeadas pelo vento. Limpá-la com lenço umedecido, um bebê recém-nascido, encaixar a fralda limpa. Depois tirar a blusa, a nudez que nunca vi agora exposta sem vergonha, os cabelos antes pintados de acaju, agora tão brancos, as unhas continuam vermelhas, escarlates até os pés.
Aí aparece um homem, um homem careca e tatuado falando grosso. Ela se esquece de mim, da troca da roupa, olha interessada.
— O Daniel Alves! — diz empolgada.
Eu me pergunto, como? Como isso pode ser possível? E respondo:
— Sim, o Daniel Alves.
Então chega a hora. Bato a porta, tranco, ela no sofá, embrulhada numa manta cor-de-rosa em tarde de 40 graus. Sinto um alívio, a paz recuperada trazendo a reboque um gosto amargo de culpa.
Iluminado pelo céu de estrelas no retrato da sacada aberta, eu sinto o perfume. De repente dispensamos panos, o couro que esquenta nossos pés. De repente entendemos que a quentura que buscamos é de outra ordem, a lascívia em cada músculo, a respiração ofegante, o silêncio é largo, longo e lento, até se estilhaçar pelo nosso grito, de repente é tão bom...
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