CLEMENTINA >> Alfonsina Salomão
Clementina estava parada, sem pensar em nada em especial, quando se deu conta: ela está chegando. Ela quem? Não sabia dizer ao certo. Ela, uma antiga conhecida que já a visitara em outras épocas. Quando tinha uns vinte anos, depois aos trinta, aos quarenta e poucos, e agora aos cinquenta. Que estranho ela vir assim, de dez em dez anos... Será que é a mesma coisa pra todo mundo?
Clementina não gostava de dar nome aos bois precipitadamente. Primeiro, ela a ignorava. Não fazia por querer, simplesmente não percebia sua chegada. Não era para menos, ela vinha silenciosa, perniciosa como uma serpente. Clementina só se dava conta da presença verde e mucosa quando seus tentáculos já lhe chegavam ao pescoço. Quando, pela terceira ou quarta vez repetida, num encontro fortuito, um conhecido qualquer lhe perguntava: “Tudo bem?”, e seus olhos marejavam. Esta situação era extremamente embaraçosa para Clementina. Ela sabia que a resposta era, inevitavelmente: “Tudo e você?”, e era o que replicava. Mas as lágrimas indiscretas desmentiam suas palavras, para sua própria surpresa. Clementina dava um jeito de encerrar a conversa e sair logo dali, antes que o conhecido percebesse a catástrofe.
Ela mesma ainda estava entendendo. Embora abortadas antes de chegarem a escorrer, as lágrimas permitiam-lhe perceber, ainda de relance, a sombra verde de um dos tentáculos da asquerosa. Ao crescer ela se tornava menos ágil, já não conseguia retrair-se rapidamente. Clementina sabia, por experiência própria, que o melhor era não esperar. Se fosse reativa, poderia evitar maiores aborrecimentos. Começava então a mobilizar seu arsenal. Primeiro conversava com o marido. Depois com uma ou duas amigas. Com os pais não valia a pena, já estavam velhinhos, se preocupariam à toa. Lembrava de uma amiga que vivia dizendo que a yoga lhe salvara a vida; mas a esta altura era tarde, não tinha forças para começar nada. Prometia-se que, quando tudo tivesse passado, tiraria do armário o tapete que comprara há uns sete anos atrás e usara apenas uma vez, numa aula experimental.
Apesar de todos os esforços, a paralisia se instalava. Clementina quase não falava. Pra quê? Não havia resposta, o eco se transformara em oco. Tampouco ouvia. A ameba envolvera sua cabeça e entrara nos seus ouvidos, as palavras perderam suas propriedades de palavras. Uma vez filtradas pelo fluido verde, restaram apenas ruídos ou, no melhor dos casos, onomatopeias. Tudo se fora, ficara o vazio.
De dentro do vácuo, Clementina contemplava. Seu ultimo gesto de sobrevivência consistia em manter a calma. Seria pior se debater. Qualquer esforço inútil poderia acelerar o naufrágio. Com um máximo de serenidade, telefonava para o médico. “Alguns casos são químicos”, dissera-lhe o doutor certa vez. Saber disto já era um começo de cura. O resto viria mais tarde. Tudo tem seu tempo, nem a asquerosa durava eternamente. Na hora certa, deslizaria pelo corpo de Clementina até o solo e voltaria a ser minúscula, quase invisível. Ficaria quietinha num canto, de tocaia, esperando a hora certa para atacar novamente. Não tinha pressa, tinha todo o tempo do mundo. E estaria ali, pronta, sempre que Clementina precisasse dela.
Comentários
Grande beijo, querida! Um prazer enorme ter você aqui!
Que texto de aprofundamento na dor e na poesia. Uma lindeza...