FILOSOFIA DE BOTEQUIM >> Sergio Geia



Tem uma frase do Fernando Pessoa que me toca muito. Dizem que, perguntado sobre o que deveria ser escrito na sua lápide depois que partisse, o poeta português respondeu: “Fui o que não sou”. Desde que li esse aforismo, ele ficou gravado nas entranhas ecoantes do meu cérebro, e reverbera todo dia como um sino, pra me levar a atitudes que talvez eu nunca tomasse na vida.
A última coisa que quero é ser quem eu não sou. Na verdade, quero ser eu, e, em minha lápide, quero cunhado o alegre comentário: “Esse aí foi quem verdadeiramente era. O Geia... Viveu...”. Saber quem somos, talvez, filosoficamente falando, seja o maior problema de todos.
O contrário é mais fácil. Tenho experiências suficientes pra dizer que em muitos momentos da vida, fui quem eu não era.
Fui quem eu não era parte 1.
Estava no lançamento de um livro quando cumprimentei uma conhecida que mora aqui perto de casa, que sempre vejo na rua, que sei quem é, mãe de quem, parente de fulana, amiga de sicrana, trabalha com beltrana. Meu conhecimento sobre ela, contudo, é comezinho e pobre, e para aí. Pois não é que ela veio me cumprimentar toda sorridente, me deu um caloroso abraço, me disse que estava com saudades, que havia tempos não me via, que eu tinha sumido, que onde eu me metera, o que estava fazendo etc., etc., etc. (Não era assédio; não era, eu lhe garanto; era confusão mental mesmo, pura confusão).
Confesso que tenho problemas com situações assim. Em vez de deixar as coisas às claras, dizendo “Querida, você tá me confundindo com alguém, não?”, “Alôô, sou seu vizinho, lembra? Vizinho, moramos perto, nos esbarramos de vez em quando, nos cumprimentamos, lembrou agora?”, eu vou deixando rolar, mesmo sem querer vou dando linha, torcendo pra que chegue alguém, um conhecido, que me tire daquela enrascada. Eu não consigo me livrar sozinho.
Fui quem eu não era parte 2. 
Foi no velório da mãe de um amigo. Dei-lhe um abraço afetuoso, rezei por aquela senhorinha que conheci pouco, mas que quando me via sempre me chamava pelo nome e dizia que se lembrava de mim, depois, me acomodei numa sala anexa e ali fiquei um tempo. De repente, uma moça chega assim do nada e me cumprimenta; eu, educadamente, respondo ao cumprimento. Ela vem:
“Oi, como você está? Há quanto tempo?” – me beija no rosto, me dá um abraço.
“Bem, e você?”, eu respondo.
“E as crianças, como elas estão?”
“Bem também.”
“Devem estar enormes...”
“Sim, João está com 20, a Chiara com 15.”
“Nossa, eu me lembro deles pequenininhos.”
Até aí, tudo bem. A única coisa estranha é que eu não me lembrava dela. Será que a conhecia? Mas de onde? Do trabalho não podia ser. Da igreja, do tempo em que eu frequentava? Será?
Mas a coisa foi se revelando aos poucos.
“Faz tanto tempo que não vou a Ubatuba, você tem ido?”
Opa, pensei, tá começando a ficar estranho.
“A última vez foi em janeiro”, eu disse.
“Então, eu lembro deles, correndo no apartamento, brincando com meus filhos.”
Fodeu, pensei. Tá me confundindo. Eu não tenho apartamento em Ubatuba, meus filhos nunca correram num apartamento, nunca brincaram com os filhos dela, ela nunca deve ter me visto na vida. Será que tá me confundindo com o meu tio?
O problema é que a conversa continuou, eu devia estar escarlate, roxo, vai, e fui tentando levar o papo sem me comprometer (muito), até que ela viu uma amiga (ufa!), me deu outro beijo, e foi.
Alívio.
Que não durou muito. Ela voltou. E desta vez, com o marido. Fodeu de vez, pensei. Na minha cabeça o negócio já se desenrolava como uma cena de teatro: “Olha, bem, quem eu encontrei!” O cara ia olhar pra mim, e um oceano de pontos de interrogação iria aparecer na sua cara. A situação seria muito constrangedora.
Não perdi tempo. Achei um amigo no meio daquela gente toda e fiz dele o meu escudo. Me escondi literalmente atrás dele. Foi constrangedor também, confesso. Mas nem tanto, diante do que estava por acontecer.
Moral da história: seja você! Sempre! 

Ilustração: https://gz.diarioliberdade.org.

Comentários

paulo pereira disse…
Pensei que isto acontecesse só comigo.
É que estou envelhecendo e já não tenho a mesma memória. `As vezes conheço a pessoa, sei onde mora, de onde a conheci, quem são os irmãos e até me lembro de alguma coisa que fizemos juntos, mas cadê o nome.
`As vezes o papo se alonga, combinamos muitas coisas e o nome jamais aparece.
Será velhice ou serão as outras preocupações?
sergio geia disse…
Mas nessas situações você sabe quem é a pessoa, embora não lembre o nome. Pior é ter certeza que você não conhece a pessoa e não desfaz a confusão. Tem que dizer logo, não é? Algo como "acho que vce tá me confundindo com alguém, não?" Eu ainda aprendo. Valeu!
Zoraya Cesar disse…
hhaha, Sergio, se isso o tranquiliza, desde sempre eu fiz isso, nem tenho a desculpa da idade ou nada! Pior, eu fiz o papel de seus algozes, pra, no final, perceber q eu me enganara de pessoa. Mme, Mico, meu codinome. Bem vindo ao time! Em tempo: mais uma crônica deliciosa!
sergio geia disse…
Obrigado, Zoraya! Pois é, a gente passa por cada uma...

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