segunda-feira, 31 de maio de 2010
MAIS DE TRINTA >> Albir José Inácio da Silva
Marcos e Paulo Sérgio Vale
Fui jovem por muito tempo e ainda não me acostumei às vantagens e conquistas da velhice. A velhice tem avançado muito nos dois sentidos, ficando mais velha e conquistando coisas. O que ainda atrapalha é a inveja.
O cabelo branco, que alguns consideram problema, é na verdade uma vantagem. Primeiro porque, se está branco, é porque há cabelo. E segundo, porque é ele que abre as portas para outras vantagens.
Uma dessas vantagens é a prioridade no atendimento dos bancos. Isso garante, além da companhia de muitos outros idosos, o ódio dos não idosos. Algumas agências têm agora um cercadinho com cadeiras, nunca suficientes, que tem causado desarmonia entre os da mesma idade. Os outros, invejosos, chamam esses lugares de “Corredor da Morte”, “Vestibular de Cemitério”, “Último Saque” e “Encerramento da Conta”.
Outra conquista importante são os descontos em eventos culturais. Estamos lotando os teatros. Mas lá estão os “sem desconto”, reclamando porque têm de chegar cedo, antes das vans. Vans que a inveja chama de “rabecões” e que estariam despejando centenas de bengalas, até só restarem cadeiras atrás das colunas.
Temos direito a vacinas que curam ou evitam muitas doenças. De novo os invejosos espalham boatos de que a injeção seria a solução final dos nazistas, utilizada aqui para resolver o déficit da previdência.
Mas essas conquistas não são nada comparadas com o olhar carinhoso, ou piedoso, que eles nos dedicam, como se vissem lápides datadas em nossas testas.
Assim como os jovens, temos o direito de olhar para onde quisermos. Só demoramos mais para ver. Temos que fixar os olhos. Isso às vezes nos rende comentários do tipo “tarado” ou “velho babão”. Isso não é verdade. Não babamos. E se babamos é por outras razões. Talvez glândulas salivares muito poderosas. Aliás, a inveja tem nos atribuído outras incontinências molhadas. Até os médicos vivem nos dizendo para repor o líquido perdido. Entendem a ironia da insinuação?
Na verdade todos são médicos a nos dizer o que comer, o que beber, como andar. Todos são advogados e nos dizem o que comprar, o que vender, com quem casar. Todos são professores e babás que vivem nos ensinando o que fazer e aonde ir. Estão, no fundo, incomodados com a nossa liberdade.
Mas estou preparando a vingança. Verão, ó invejosos, quando acabar o reumatismo, a visão melhorar e desaparecer o labirinto, como é que vou tratar vocês! Quem ri por último, ri melhor. Me aguardem.
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domingo, 30 de maio de 2010
QUESTIONÁRIO >> Eduardo Loureiro Jr.
Antes de ir direto ao ponto desta crônica, que é a Questão 3, vamos fazer primeiro um aquecimento, alías dois: duas aberturas, duas introduções, dois aperitivos, dois antepastos, duas submesas, duas enrolações enfim.
QUESTÃO 1
Quando alguém tem "outra alternativa", quantas possibilidades de escolha ele tem à sua disposição?
a) 1
b) 2
c) 3
d) 4
Se você respondeu a), você é um pessimista ou um dogmático, que pensa que não há saída ou que as coisas só podem ser feitas de uma maneira.
Se você respondeu b), está precisando estudar um pouco mais de português.
Se você respondeu c), você está certo, mas não espere elogios por isso, afinal a resposta é óbvia.
Se você respondeu d), você é um lunático ou um otimista, que não tem familiaridade nenhuma com números ou que acredita que aquele que já tem receberá ainda mais.
Gostou? Quer brincar novamente?
Não gostou? Quer uma nova chance?
Vamos lá...
QUESTÃO 2
Quando alguém tem "outra escolha", quantas alternativas ele tem?
a) 0
b) 1
c) 2
d) 3
Se você respondeu a), você é um burro metido a inteligente, que acha que existe alguma pegadinha na pergunta quando não há pegadinha nenhuma.
Se você respondeu b), você está certo. Se você estiver certo pela segunda vez, merece um elogio, mas não espere que ele venha deste cronista. Se você estiver certo pela primeira vez, possivelmente foi só um chute e você deveria se envergonhar disso.
Se você respondeu c), você precisa consultar um dicionário para saber a diferença entre escolha e alternativa.
Se você respondeu d)... Não, ninguém seria burro o bastante para responder d).
Agora é pra valer. Prapare-se.
QUESTÃO 3
Um homem gosta de palitar os dentes após o almoço. Sua mulher considera tal hábito nojento. Como o casal deve se comportar?
a) O homem tem o direito de palitar os dentes e a mulher tem o direito de ficar irritada.
b) O homem tem o direito de palitar os dentes e a mulher deve aceitá-lo como ele é.
c) O homem não deve palitar os dentes e a mulher está lhe devendo um favor equivalente (talvez parar de ter TPMs).
d) O homem não deve palitar os dentes e a mulher não precisa nem agradecê-lo, afinal ele está fazendo apenas a sua obrigação de esposo.
Se você respondeu a), e é homem, você é um guerreiro. Se você é mulher... tem certeza de que você é mesmo mulher?
Se você respondeu b), e é homem, me diz onde foi que você encontrou uma mulher como essa. Se você é mulher... não, definitivamente você não é uma mulher.
Se você respondeu c), e é homem, eu espero que você seja bom de cobrança e não deixe essa passar barato. Se você é mulher, saiba que deixar de palitar os dentes não tem preço e que seu marido jamais vai lhe perdoar por isso.
Se você respondeu d), e é homem, francamente... eu esperava mais de você. Se você é mulher... mas que raça ingrata, hein!
*
Se você é homem, "we are the choice, my friend".
Se você é a alternativa, saiba que nós homens também temos TPM: Tendência Passageira à Misoginia.
sábado, 29 de maio de 2010
DE AMORES E TRAIÇÕES [Debora Bottcher]
Eu me lembro de ter escrito um texto antigo, certa ocasião, dizendo que todas as histórias de amor são iguais.
Essa é uma afirmação que pode causar espanto num primeiro momento, mas se a gente vasculhar os casos de amor à nossa volta - só à nossa volta -, vai ver um sem-número de repetições, ainda que variadas em ordem e conteúdo.
Se encontros podem ser únicos - e o são -, desencontros parecem uma trilha que nunca se cansa de atravessar nosso caminho. E como é difícil desviar dos entraves, driblar os contratempos, continuar inteira dia após dia, (re)conquistando a cada amanhecer a mesma pessoa!
E quando alguma coisa deixa de fazer sentido, não tem como não causar sofrimento na ruptura - eu acho que nunca soube de duas pessoas que se separaram em igualdade de sentimentos; sempre um dos dois ainda ama, ainda gostaria de continuar, de tentar mais uma vez...
Mas eu falo de não angariar mais uma dor com a traição. Não custa romper sem trair o sentimento do outro, sem quebrar totalmente sua auto-estima, sem aumentar sua indignação, sem lhe roubar toda crença no amor e na esperança.
Eu nunca traí ninguém, mas já estive do lado de cá. E não há dúvida: o susto, a incompreensão, a amargura, sempre se supera, mas não se esquece. E fica a marca, o medo da repetição, uma angústia por muito tempo... Confiar novamente é um processo árduo - nem só confiar no outro, mas em si mesmo. Esse eu acho que é o maior entrave da traição: ela esmigalha nossos valores pessoais, pisa na nossa segurança, além de jogar por terra nossos sonhos em relação àquela pessoa - e, às vezes, até no futuro.
Acho que trair não é bom pra nenhum dos envolvidos - e aqui incluo a terceira pessoa. Não sei, mas imagino que deva ser um tempo de sobressaltos, indecisões, mentiras - sempre mentiras -, e muita confusão emocional. É uma situação em que, normalmente, todos perdem e acho que o melhor caminho é conduzí-la com o máximo de transparência e verdade. Não deve ser fácil - até porque a coisa toda é bem complexa.
Bom seria se a gente pudesse viver sempre na confortável mansidão amorosa que pregou Lya Luft: "O casal perfeito talvez seja aquele que não desiste de correr atrás do sonho de que, apesar dos pesares, a gente, a cada dia, se escolheria novamente.”
Amém.
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sexta-feira, 28 de maio de 2010
GAMBITO >> Leonardo Marona
- Preciso falar com o Campos – eu disse a ela.
- Você veio para a dinâmica de grupo?
- Acho que sim.
- Suba até o auditório e espere.
Subi até o auditório e lá encontrei alguns rostos querendo parecer calmos. Dois ou três homens com cabelos em forma de cuia e ternos justos de veludo, fumando cigarro. No mais eram umas dez mulheres, todas arrumadas como se tivessem apenas aquelas roupas, todas parecendo mulheres duras e fatais capazes de tudo. Aquilo era parte do processo seletivo, na certa, mas como era cedo demais para demonstrar dureza e capacidade, dei meia-volta e permaneci no andar de baixo, como um homem ridículo com disfunção renal, folheando um livro com as obras completas de Van Gogh, divididas por período. O período posterior à internação no manicômio de Saint-Rémy era o melhor - disparado. Depois que ele saiu de lá e foi para Auvers, suas pinturas abandonaram a até então vigorante inquietude ecumênica e se tornaram sobrenaturais, mal-assombradas, feitas por um homem de gênio que perdeu a cabeça. Umas gravuras japonesas também me chamaram a atenção quando, de repente, vi que as pessoas começaram a entrar no auditório, atrás de um rapaz careca aparentemente efeminado.
Fui o último a entrar, acreditando que aquilo poderia causar algum impacto positivo para minha insegurança. O impacto foi que comecei a suar no buço, e a camisa começava a marcar debaixo das axilas.
Campos era um homem lá pelos seus trinta anos, ou talvez fosse mais jovem, mas, pela careca, parecia mais velho. Ele era o psicólogo que analisaria os candidatos à vaga de vendedor.
Ao lado de Campos havia um outro homem, bem mais simiesco, escuro mas não negro. Ele se apresentou como González, mas teve que repetir o nome três vezes até todos entenderem. Isso serviu para descontrair o ambiente que, como um todo, escorria a suor e expectativa, e todos sorriram, alguns deram risadinhas por baixo das mãos. González nos olhava como quem tem uma posição superior à sua e não se importará em dificultar a sua vida, se você ficar cheio de nove horas.
- Bom, pessoal – disse Campos –, vamos fazer hoje aqui mais uma etapa de seleção para o departamento de vendas da Livraria Cultura. Meus parabéns aos que passaram pela primeira fase, de conhecimentos gerais sobre a cultura universal...
“Cultura universal”, e toda aquela velha conversa mole.
- Agora, cada um de vocês deve ir até a frente do palco para se apresentar, contar um pouco da vida de vocês. Você – e apontou para uma menina completamente estrábica, e seus olhos vesgos tinham um charme sutil.
Era magra e angulosa. Você podia pensar nela em centímetros quadrados. Se era atraente? Não especialmente. Usava óculos com aros transparentes e parecia ter uma perna mais curta que a outra. Sem jeito, disse seu nome, que eu esqueci assim que ouvi, disse também que trabalhava num brechó e estudava filosofia medieval. Isso é mais fácil de lembrar, por motivos óbvios.
Campos resolveu fazer um truque traiçoeiro e perguntou à menina que obra de arte a definiria. Ela gaguejou um pouco, mas, quando falou, não estava trêmula: “Campo de corvos com trigo”.
- Você quer dizer “Campo de trigo com corvos”?
Alguns riram, eu procurava seus olhos, desperdiçados pelo chão. Ela ficou vermelha e, cabisbaixa, voltou ao seu lugar. González pediu licença para ir ao banheiro.
Desnecessário discorrer sobre todo esse processo. Dos treze ou catorze candidatos, dez eram cineastas, todos com uma vasta ou pelo menos promissora bagagem, me lembro que um disse que seu filme favorito era – francamente – Kill Bill. Havia também uma outra menina que só lia ficção científica inglesa dos anos 30, e citou “A Revolução dos Bichos”, ficção não-científica dos anos 40, como obra que definia sua personalidade, pelo que alguém no fundo do auditório simulou o guincho de um porco. Alguns riram. González voltou do banheiro. Lenço na mão, suando. Pobre González.
Havia também um marxista foucaultiano que defendia a idéia de que a contradição leva à ruína – sujeito amistoso – e um antigo membro, não se sabe de que tipo de anatomia, do finado movimento punk (?) brasileiro, “dessa turma aí dos Replicantes”, disse o próprio, hoje um senhor barrigudo e bonacheirão, metido num suéter de lã vermelho, três filhos pequenos, dívidas imensas. Nesse momento senti culpa. Eu não tinha filhos. Eu nunca tinha ouvido falar do finado movimento punk brasileiro. Nada em mim, ou na minha mais remota memória, cheirava a suéter de lã. Eu não merecia a vaga dele.
De minha parte mesmo, me saí terrivelmente na apresentação. Olhando os encontros das vigas de sustentação vermelhas, disse basicamente que eu era um expatriado, sem rumo, que tinha acabado de chegar à cidade natal, sem saber muito por quê. E, pondo tudo a perder, citei quase aos prantos que a obra que me definia era “O sol também se levanta”.
- De quem? – disse Campos me apontando com o lápis, como se soubesse, mas tivesse esquecido propositalmente.
- De quem o quê? – eu disse, pensando em grades e calcinhas no varal.
- O livro.
- Ernest Hemingway – mas sob pressão eu pronunciava sempre mal o Ernest, para dentro.
- Herbert quem?
- Ernest, Ernesto Hemingway, o escritor americano.
Campos sorriu com um sorriso de boca aberta, o sorriso normalmente feito por uma pessoa que reflete se você é mesmo ou não um idiota. Procurei Hemingway nos olhos das pessoas sentadas nas poltronas, não achei nem mesmo Kafka. Era tudo liso, ornamentado, pronto para explodir de tanta contenção.
- Pode sentar... Como é mesmo o seu nome?
- Leonardo Marona.
- Leonardo Marone, por gentileza...
- Marona.
- Sim, oquei, ao seu lugar...
Campos sorria quando me conduziu. González tinha ido outra vez lá fora, com um cigarro na mão, murmurando algo em outra língua. Estava numa pior, o coitadinho.
Era lógico que meu desempenho na apresentação tinha contado pontos negativos na minha avaliação como candidato, mas eu ainda me mantinha razoavelmente humano. Depois que todos se apresentaram, ficamos esperando o González voltar. Alguém levantou a mão.
- Sim? – disse Campos, de braços cruzados, com as sobrancelhas.
- Qual é a função do Gonçalves?
- González...
- Sim, qual é?
- Ele é fiscalizador.
- Ele é fiscalizador da fiscalização, é isso?
Todos riram. González entrou. Um silêncio afiado de fuligem no ar. Campos dividiu as pessoas em dois grupos e simulou situações de venda. No meu grupo havia um sujeito metido a malandro que já trabalhava como caixa-registrador na livraria e estava fazendo o processo seletivo apenas para mudar de área. Ele logo antipatizou comigo, quando lhe perguntei se ele não deveria estar participando de outro processo de seleção, e não deste. Simularam um problema e todo o grupo era a favor de esconder do cliente a causa do problema. Eu defendia que era melhor jogar às claras para evitar mais problemas. Uma gordinha de cabelo roxo com um cacho branco na franja e um brinco no nariz disse que eu era “mais chato do que o cliente”. Fui voto vencido, e não senti em momento algum que aquilo pudesse ser bom para as minhas possibilidades.
Mesmo assim respirei fundo. Sempre tive tendência a me controlar nos momentos críticos. E ali estava eu, formado na faculdade, um bom filho, sem graves problemas com drogas, mesmo assim alguém de difícil convivência, com certo talento teórico, tentando mostrar normalidade, diante de um precipício. E não me interessava o trabalho no fim das contas, eu queria apenas poder estar legitimamente naquela cidade, e o trabalho era a forma mais hipócrita e, portanto, a mais natural de se alcançar isto.
Saímos da dinâmica de grupo, nos demos beijos nas bochechas e limpamos as mesmas com as costas das mãos. Seguimos direto aos cigarros e aos pontos de ônibus, diante da cor encardida de qualquer ponto em Porto Alegre. Vomitei um pouco num canto, suei frio, senti falta da minha mãe, pobrezinha, indígena, o intestino comido por dentro.
Reparei outra vez naquelas perninhas de gambito. É como se diz em Pernambuco: pernas de gambito. Ainda por cima, com os pés para dentro. Magra e desamparada, duas características irresistíveis nas mulheres, que me encantam. Muitos pêlos nos braços, negros, grossos, dando a entender um cheiro entranhado extremamente frágil, e sexual.
- Oi, sabe que ônibus eu pego pro Bonfim?
- Eu vou pra lá.
- Você errou o quadro do Van Gogh.
- Pois é, acontece.
- O que foi?
- Fiquei nervosa.
- Acontece, realmente.
Entramos no ônibus, fomos em pé, ele passou lotado.
- Escuta, você dança? É que eu ainda não conheço ninguém. Não saio nunca.
- Não danço. Como vê, sou manca.
E eu poderia apenas dizer o quanto ser manco era antigo para mim. Os olhos alucinados de Van Gogh em Saint-Rémy resplandeciam sobre os olhos da menina de quem eu nem mesmo sabia o nome e, afinal, no fundo não se sabe o nome de ninguém. Eu tinha vontade de dizer coisas bonitas sobre alguns momentos breves do cérebro enfim refeito. Dizer que algumas vezes realmente sabemos o que nos pode encantar, reconhecemos isso, e damos o braço a torcer por isso, e repetimos as mesmas antigas doses exageradas, e desejamos amantes com certa coerência, e nisso reconhecemos os estrangeiros do mundo, por isso queremos os amputados, os mancos e os com a cabeça a prêmio: eles são os mais nobres, com as cordas em volta do pescoço e o grito amputado.
- Ei, aquela conversa de filosofia celta medieval é verdade?
- Não falei nada sobre filosofia celta.
- Você tem quantos graus?
- Nove e meio de miopia.
- Isso não é muito?
- É quase tudo.
- No fundo, sempre é.
Ela disse também que cantava numa banda de rock. De que tipo? Alternativo. Enfim, de vez em quando ela pintava o cabelo de verde, ou de roxo, e saía derrubando latas de lixo por aí. Uma bela alma, duas almas sem emprego, nem felizes nem tristes, apenas assustados. Com os pés para dentro, as pernas tortas, todos os graus possíveis, pedindo carona para o dia seguinte.
- Você acha possível que a gente consiga o emprego? – eu perguntei a ela, enquanto ela descia do ônibus.
- Você acha que Van Gogh conseguiria? – ela disse, e me mandou um beijinho com a mão.
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quarta-feira, 26 de maio de 2010
O CADERNO DO IVAN >> Carla Dias >>

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domingo, 23 de maio de 2010
SÓ CASO SE FOR VIRGEM
>> Eduardo Loureiro Jr.
Foi há 12 anos. Ele tinha 29. Ela, 17. Ele, um pequeno empresário em ascensão. Ela, ganhadora de concursos de beleza. Casamento marcado. Festa preparada com quilos de capote, galinha, carne, arroz e feijão. Data agendada no pequeno cartório da cidade. Mas ele, o noivo, não apareceu.
Ele e ela se conheceram por intermédio de uma prima dela, hoje arrependida de tal cupidez (com duplo sentido). Foi num show de forró. O nome da banda: Noda de Caju. "Nódoa de caju não sai de jeito nenhum". Poderia ser indicativo de uma união eterna, mas foi só um processo que correu na justiça por anos. Resultado: ele deverá pagar a ela 10 mil reais.
Véspera do casamento. Motel da cidade. Ele dá pequena propina para o porteiro. Ela é "de menor". Ele, ansioso, não podia esperar pelo dia seguinte. Ela, nervosa, quer conversar. Ele diz que podem conversar depois. Ela insiste. Ele acata. "Não sou mais virgem", ela diz. Ele cala. Ela repete. Ele: "Mas nós namoramos faz três anos." Ela: "Foi antes". Ele: "Mas..." Ela: "Não queria que você..." Ele fez de conta que aceitou. Sem mais palavras. Guardaram as intimidades nas roupas e foram embora.
No dia seguinte, no cartório, ninguém entendia nada. Ela desconfiava. Ele estava numa cidade vizinha, num outro motel, desvirginando uma desconhecida pela qual pagou caro. Só voltou para casa à noite, embriagado. O pai dela veio tomar satisfação. Ele: "Sua filha não é mais moça". O velho calou-se e saiu.
Ele achou pouco. No dia seguinte, pagou para que saísse na rádio: "Só caso com virgem". Ela virou assunto na cidade. Ele se entregou à bebedeira. Gastou o dinheiro no álcool, no jogo e no advogado. Processo por danos morais. Perdeu. Recorreu. Perdeu de novo, agora de vez, por violar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem da ex-futura esposa.
Hoje. Ela: médica solteira morando no Sul. Ele: motorista de ambulância e vendedor de churrasquinho nas horas vagas. Ela não precisa dos 10 mil. Ele não tem dinheiro para pagar a indenização. Ela, que não é Virgem, é Escorpião, sorri, vingada. Ele sai para o trabalho na mesma pequena cidade, vai levando com a barriga cheia de cachaça.
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sexta-feira, 21 de maio de 2010
PORTO ALEGRE REVISITED >> Leonardo Marona
A família está junta. Não se conhece há anos. Levantamos nossos copos – “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra!” – e estamos outra vez em silêncio, vendo a televisão. Na estranheza acumulam-se calos. Andar sem parar é uma forma de não pensar na fuga. O Parque da Redenção ainda atinge um pouco o âmago, o verde é mais verde, o chafariz ligado, em todo o seu provincianismo, é uma imagem juvenil, com suas tias de boinas francesas e suas menininhas de cabelos cor-de-rosa e botas de exército, pintando quadros infantis. Ali também estão os meninos pobres que não decaíram. Estão na sarjeta, catando restos, mas, quando pedem alguma coisa, pedem sem atenção, displicentemente, olhando para os lados e roendo as unhas, pedem por manter uma tradição de pedir, porque viram pessoas acabadas, mais velhas, experientes, quase mortas, seguirem por esse caminho e, assim como a nós, os que podem dar e se recusam, eles, os meninos das garrafas de cola, desprezam seus antepassados porque estão na miséria mais profunda, que é a miséria do espírito, e dependem daqueles restos de sardinha como o traidor que negocia com o diabo a própria corda em volta do pescoço.
Mas os meninos invadem o chafariz e atrapalham a aula de belas artes. Existem por ali também algumas magras moças argentinas com brincos nos narizes e polainas sobre os sapatos muito sujos. São sujas como o tempo, embaçadas, e carregam pequenos cachorros de pelo ralo. Param nas pastelarias, dizem “hola, que tal?”. E de repente sou um pouco mais argentino, de um núcleo sertanejo, e meto um gorro na cabeça e faço amizade com paraplégicos nos bares com grades enferrujadas. Falamos uma língua que não se constrói pela necessidade. Não precisamos de nada e gostamos de esperar assim tão pouco. Estamos alheios a tudo, no mais, somos tetraplégicos do tempo. Corremos pelas alamedas infestadas e com as fachadas em ruínas, desviamos da moral atrás de drogas rápidas, e de repente – vupt! – num solavanco derrubo o paraplégico, meu amigo, no chão. Ele grita que enlouqueci, rimos, tento erguê-lo com a minha força, mas já é de manhã, e logo mais tem jogo no Estádio Olímpico Monumental. Derrubo outra vez meu amigo no chão. Ficamos ali, estendidos na avenida sem movimento.
Quebramos sem querer algumas garrafas, somos selvagens da ternura por alguns instantes. Um ônibus até Viamão, paro na Barão do Amazonas, subo muito, subo como um Sísifo, estou numa boca braba. Tenho ganas de descer rolando pela rua e aceno aos homens que limpam armas niqueladas, com palitos enfiados nos dentes, muito magros, sem cor, pretos sem cor, brancos sem cor, nos sentimos bem juntos e eles me devolvem o aceno. Grito: “Logo mais tem jogo do Grêmio!”. Eles respondem em uníssono: “Dá-lhe!”. Não sou mais desse lugar a não ser pelas entranhas malogradas. Saio correndo e durmo apenas meia hora. O frio cobre a minha coragem e tento tirar alguma restante da minha estropiada camisa onde se lê escrito: red eyes no more. Morto de frio, sigo ao estádio.
Mario Quintana, meu querido, seu tempo já foi. Agora somos uma massa descontrolada, temos as vozes roucas e a pele ressequida, não deixaremos mais a sorte se refugiar nos peitos doentios de poder, temos anos de experiência na seqüência da morte – precisamos passar. Mas não nos dê licença, meu senhor. Com a alma azul celeste passaremos atropelando as tendências como búfalos de alto preço e, prestes a sermos abatidos, daremos a vocês a energia de mil sóis.
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quarta-feira, 19 de maio de 2010
A VARANDA >> Carla Dias >>

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domingo, 16 de maio de 2010
SMSS >> Eduardo Loureiro Jr.
A paz mundial virá pelo futebol.
Essa semana, o Dunga — que muitas vezes parece mais o Zangado — convocou os 23 jogadores brasileiros que vão à Copa do Mundo da África do Sul. Considerando o grande número de bons jogadores que temos e o fato de que cada torcedor brasileiro é um técnico amador, Dunga conseguiu desagradar a muitos que queriam antigos (Ronaldinho) e novos (Neymar e Paulo Ganso) na seleção.
Dunga está certo. E nós estamos certos. Um técnico não tem como nem deve se preocupar em agradar todo mundo. Ele é o responsável, ele escolhe, ele recebe os louros, ele paga o preço. Mas nós, que só damos pitaco, também temos nosso direito, já que a seleção é brasileira, e não dungueira.
Se serve de consolo, não se trata de um problema apenas nosso. Mundo afora, na Argentina, na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos, no Japão, os técnicos também estão excluindo jogadores que, se dependesse do povo e da imprensa, iriam à Copa. Como a FIFA, órgão responsável pelo futebol no mundo, tem mais países associados (208) que as Nações Unidas (192), já está na hora do futebol assumir o papel que lhe cabe como unificador mundial.
Minha sugestão é simples: formar uma seleção planetária com os jogadores excluídos das seleções nacionais. Seria a Seleção Mundial dos Sem-Seleção, a SMSS. A seleção mundial teria direito automático a uma vaga nas copas do mundo. Seu escudo seria um globo; sua camisa seria azul e verde. O slogan: "Um mundo, um time". Técnicos e jogadores interessados em ir à Copa pela SMSS se candidatariam no site da FIFA e uma votação online definiria o comandante do time e os 23 jogadores.
Dungas, Sonecas e Atchins, técnicos em geral, enfrentariam menos críticas. Os bons jogadores excluídos de suas seleções nacionais teriam uma segunda chance de mostrar seu talento. Todos os torcedores do mundo teriam mais um time pelo qual torcer. Sairíamos todos ganhando.
E, enquanto não se descobrem outros planetas com vida inteligente e paixão pelo futebol, nosso time, a SMSS, iria treinando com as seleções nacionais durante as copas do mundo. Quando fosse criado o primeiro torneio interplanetário, já estaríamos preparados para enfrentar homenzinhos verdes e azuis.
Fica dado o meu pitaco, a minha sugestão. Agora é com o presidente da FIFA, o senhor Joseph Blatter.
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sábado, 15 de maio de 2010
LONDRES NA ALMA [Debora Bottcher]
Pouco importa que não mais seja assim na realidade - afinal, modernizaram-se! -, mas quem imagina Londres com sol aberto, flores coloridas e pessoas sorridentes? Tudo muito formal - as faces, os tons, as vestes, a vagarosa pressa, uma contradição! Como se tivesse sido cristalizada no século passado, cem anos de atraso apesar de sua muita evolução.
Lady Di (a linda Princesa de Gales), quando despontou pelos palácios, soou-me como o símbolo de um novo tempo para essa gente sempre muito séria, de ar e gestos estudados, a fala comedida. Mas quis o destino que lhe fosse reservada uma morte tão normal como a do mais simples mortal comum: um acidente de carro! A ironia cotidiana sempre me surpreende... E o glamour da Inglaterra perdeu-se novamente nas sombras... Não mais a proteção de um anjo de olhos azuis para mostrar ao mundo um tanto mais de sensibilidade além do espírito reservado de todo um país; não mais o destemor de afrontar a realeza para ser simplesmente mulher e gozar da liberdade disso depois de ser encerrada num castelo que, de contos de fadas, só tinha mesmo as torres.
Muito tempo antes, Virginia Woolf enlouqueceu pelas mesmas razões: a obrigação de ter de se comportar com tamanha rigidez quando tinha um pássaro, desejoso de voar, enclausurado dentro de si. Quando contou, nesse seu primeiro romance - considerado sua obra-prima -, um dia na vida de uma mulher - um único dia! -, abriu sua alma a todas as possibilidades de viver. Mas abraçar a morte, para algumas mulheres (por escolha ou acaso), parece ser a única maneira de ver-se livre de opressões e amarguras...
"Afinal, ela sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um só dia que fosse..." (Virginia Woolf)
Quase nunca é fácil lidar com inquietações, afazeres cotidianos, a vida urgente ao nosso encalço, os questionamentes, nossas sombras... E, não raro, a gente chora - quieta e sozinha. E tem vezes que nem sabe bem por quê. Muitas vezes, é só porque o dia amanheceu do avesso e alguma coisa sai do eixo. Ou porque um amigo distante telefonou e contou da sua dor - nos lembrando de uma amargura que tanto se tenta esquecer. Ou aquela saudade de quem não se verá jamais - quem sabe, com sorte, em outra vida se ela existir.
Tem dias que são assim: um inverno em pleno verão. Ou um outono de acentuadas formas...
Ah! Sim... Agora estamos ante a estação das folhas que caem. Já viu? Os dias mais bonitos do ano moram nessa época. Tem um céu de azul profundo e nuvens brancas que se mesclam em muitas formas rodopiando com o vento.
E o vento? Gelado, mas quase sempre suave e calmo - como um pássaro de asas pálidas voando pra lugar nenhum (mas pode tornar-se apressado, de repente ventania, varre o mundo com sua fúria feito alma em desalinho).
Tem dias em que a gente se sente só - ainda que entre pessoas amadas. E queria poder explicar, a quem nos capta a angústia, que não é nada: é só um dia que não caiu bem - como uma Londres da paisagem de um filme ou da descrita no livro antigo que descansa na estante...
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sexta-feira, 14 de maio de 2010
CLARICIANA >> Leonardo Marona
Andamos nas ruas à procura de um tombo que nos faça apaixonar por algo: já não cremos na dureza da evolução vertical. Mas no fundo sabemos: os espaços estão acabando, estamos sendo espremidos nos cantos das mesas, e precisamos tomar nossas cervejas escondidos atrás de gigantescos chapéus retóricos. Esse romantismo fora de moda, essa inclinação vexaminosa ao perigo da ternura gratuita, os choros enquanto assobiamos antigas canções que não nos lembram nada, não importa muito de onde trouxemos tal bagagem: estamos cegos e seguimos em direção ao sol amargo da desconfiança.
Um homem deve-se perguntar: o autoconhecimento deve necessariamente representar a morte do amor? Conhecer mata, seguimos suscetíveis aos mais variados melodramas. Estamos vivos, portanto, mas não pertencemos, não fazemos os outros dizerem: “De fato, progridem”, nem sabemos responder às mais simples questões. Ao contrário, sangramos sorrisos e torcemos ainda pelo desregramento de todos os sentidos.
Por que não vieram de uma vez nos alimentar com roupas exageradas e loucos cachecóis? Nos jogaríamos facilmente na degeneração da verdade, através da fantasia, apenas para poder dizer: “É mentira, então posso fazê-lo”. Nosso paradoxo mais emocionante: a depravação nos isola como párias, mas pelo menos promete um pouco de verdade. Nossa única maneira de sentir, o beliscão na pele que machuca e elucida, é sermos contra a verdade. Na negação de tudo, podemos aceitar. A nós – antiga doença – parece fundamentalmente sem sentido afirmar coisas como “agora sim, vejo que tenho”, ou “não é bem isso, mas farei com que seja”, ou ainda “preciso esquecer isso, então pensarei naquilo”. Não temos compartimentos, as guerras internas nos conduzem a um inebriante e mentiroso estado de charme. “Nada me importa”, dizemos sem dificuldade, com a boca trêmula, esperando que algo aconteça, o plágio definitivo que nos permitirá dormir outra vez. Nada acontece, então acendemos um cigarro, e pensamos: “É incrível o domínio que se tem sobre a própria vida”. No fundo, nossa grande aspiração é a de sermos arrebatados por um soco firme nas idéias, o que nos faz beber descontroladamente de uma delicadeza selvagem, felina, como o gato acuado por uma chuva de prata: atávico e bonito crime da vida.
É preciso ser herói ou chafurdar na lama. Queremos os olhos quentes e as nucas expostas em desejos musicais. Não nos obriguem a explicar essa beleza assustada que tende a deixar o corpo nu diante de cruéis expectativas. Criar uma nova espécie antiga é nossa única forma de permanecer. Não viemos apontar os atalhos, estamos vendados com a purpurina barata da lucidez indiferente, vejam com atenção nossos esperançosos caminhantes, como eles pedem, como dão o que nem tem, estão com o peito rasgado, a boca seca, os passos frenéticos de pernas curtas demais, e ali está algo que suplica por provações que justifiquem a nossa tristeza, que não podemos afirmar a não ser com pequenas gracinhas sem pretensão. E, além de tudo, pensem o que quiserem, mas quando agredimos e cuspimos estamos entregando nosso mais precioso bem. O resto é mentira, serve apenas para viver.
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quarta-feira, 12 de maio de 2010
IMAGINE SÓ... >> Carla Dias >>

Imagem: Escultura Fugit Amor, de Auguste Rodin
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segunda-feira, 10 de maio de 2010
MÃES, FLORES E FOTOGRAFIAS
>> Albir José da Silva
— Ele ganhou de mim!
— Ganhou de nós todos.
— Ainda ontem a gente tava apostando quem é que ia primeiro.
Vi a cara confusa dos presentes ao velório com aquela conversa, mas eu sabia do que falavam. “Ganhar, ir primeiro” significava morrer. E morríamos aos bandos, como formigas, caindo dos trens.
As portas dos vagões não se fechavam nunca, ou porque estavam com defeito ou porque as pessoas as travavam. Dezenas de pessoas se amontoavam nas portas e milhares se apertavam no interior dos carros. Adolescentes e adultos formavam bolos de gente agarrados uns aos outros porque não havia onde segurar. Ninguém queria ir sozinho e quando um caía, levava mais três ou quatro. Alguns caíam de cima dos trens e outros das janelas, porque também se viajava agarrado apenas às janelas. Era comum ver cadáveres ao longo dos trilhos. No trabalho, as pessoas comentavam displicentes:
— Hoje foram dois em São Cristóvão.
— Em Bangu tinha quatro. Um sem cabeça.
Ninguém se espantava mais. Falava-se dos mortos dos trens como se falava de futebol. Só as mães se desesperavam nos enterros.
A propaganda dominava a paisagem da cidade com placas, letreiros luminosos e distribuição de folhetos, mas nunca vi um simples alerta: “NÃO MORRA CAINDO DOS TRENS!”. Na estação D. Pedro II, da Estrada de Ferro Central do Brasil, que devia contabilizar os mortos, ninguém se preocupava com isso. Nas paredes da gare, no melhor estilo faroeste, cartazes pediam que a população denunciasse os procurados. Terroristas perigosos, os barbudinhos e as mocinhas de olhar assustado pareciam sair de algum trote de calouros. Lembro do comentário de uma senhorinha: “Puxa, nem parecem terroristas. Parecem filhos da gente”.
Hoje a Central tem cartazes proibindo cigarros e o painel eletrônico informa com precisão os horários e destinos dos trens. Ninguém mais despenca das portas, que agora ficam fechadas. Os vagões têm ar-condicionado e agentes circulam pelas plataformas e carros cuidando da segurança dos usuários.
Os meninos hoje morrem de crack e de tiros, mas já não caem nos trilhos nem frequentam cartazes terroristas.
Os sobreviventes das fotos e dos trens saúdam as mães de maio. Mães que abraçam seus filhos no segundo domingo. Mães que os visitam com flores no dois de novembro. E mães que ainda procuram por eles durante todo o ano, olhando retratos, em cartazes que já nem existem mais.
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domingo, 9 de maio de 2010
COLO, COMIDA E CONSELHO
>> Eduardo Loureiro Jr.
O espaço da maternidade é o colo, o aconchego dos braços. Mãe que é mãe dá esse abrigo no peito, que é uma abreviatura da casa, que é uma miniatura do mundo, que é um holograma do universo. Mãe dá ao filho esse lugar de descanso. Filho tem para onde retornar quando a situação aperta, quando a vida nos faz sentir pequenos, medrosos, acuados. Colo de mãe é consolo, companhia na solidão. Colo é cadeira de balanço, é varanda de casa de praia, é banco de pátio, é quarto de hóspedes. Colo é a lembrança de que um dia se mamou no peito, essa extensão do grande coração que a mãe carrega dentro.
Do colo, pelo cheiro, vem a comida. Criança, que mama no peito, quando cresce come na mesa sempre posta, troca o leite pelo baião-de-dois, pela tapioca, pela sopa, pelo bolo de sal; e, quando necessário, pela garapa, pelo xarope, pelo chá de carqueja ou de quebra-pedra. Comida da mesma consistência do nosso tamanho: se o filho é pequeno (na altura, no choro, na doença), dá-lhe líquido; se o filho é crescido (no orgulho, na responsabilidade), dá-lhe carne com osso ou com nervo para ser comida com paciência.
Mãe também dá de comer palavra ao filho: sabor que vira saber, comida que vira cuidado. Mãe dá liberdade e dá livro, dá hobbie e dá história, dá providência e dá provérbio, dá carinho e dá carão. Mãe ouve confissão em silêncio e dá conselho em exemplo. Mãe aceita o filho estranho, extraviado, estrangeiro. Mãe chama o filho não apenas pelo primeiro nome ou pelo apelido; sabe chamar nosso nome completo, nosso destino correto. Conselho é causo de família, moral da história. Conselho é "Sapateiro Feliz", "Zorba, o grego", "Coiote" e "Conspiração Aquariana".
Mãe talvez seja só uma mesmo: uma heroína de mil faces. Mãe é mar, é Maria, é Mazé. Mãe é amor, é harmonia, é Tia Monca. Mãe é risada, é graça, é Gracinha. Mãe é além, é luz, é Luiza.
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sexta-feira, 7 de maio de 2010
DEDOS AMARELOS >> Leonardo Marona
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quarta-feira, 5 de maio de 2010
SENHA 456 >> Carla Dias >>

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domingo, 2 de maio de 2010
INQUÉRITO >> Eduardo Loureiro Jr.
Mesmo a acusação sendo a de que o cronista não está fazendo nada quando deveria estar fazendo alguma coisa, o cronista permanece em silêncio, sabendo que corre o risco de ter a acusação duplicada: "O cronista é culpado de não fazer nada para se defender da acusação de não fazer nada, o que comprova, obviamente, sua culpa em primeira e segunda instância".
Mesmo correndo o risco de desacato à autoridade, este cronista permanece de boca fechada e fones no ouvido, escutando Boca Livre e seu maravilhoso disco Dançando Pelas Sombras. Porque o cronista acha a luz artificial muito quente e incômoda, e prefere a luz indireta, o dilatar das pupilas para ver no escuro.
Mesmo sabendo que sua atitude não leva a nada, que está sujeito a ser condenado, preso e encarcerado, que a saída é a porta principal, este cronista se recusa a entrar no jogo da justiça sem justiça. Um homem tem o direito de não fazer nada, pensa este cronista, inclusive o direito de não fazer nada para comunicar aos inquisidores seu direito de não fazer nada.
Este cronista não ama musas, apenas músicas. Prefere compositores e instrumentistas a beldades inspiradoras. Se finje de Alan Delão mas, na realidade, este cronista prefere ouvir cantos a proferir cantadas. Concorda com o ditado de que a palavra é de prata e o silêncio é de ouro, e também com aquele que diz que, se temos dois ouvidos e apenas uma boca, é para escutarmos mais do que falar.
Não podendo — por risco de implosão — fazer o silêncio completo que deseja, este cronista escreve. A escrita é o silêncio com palavras. Ouve quem quer, na hora que quer. Carapuça para quem tem frio no juízo. A aranha vive do que tece.
Este cronista escreve porque tem gente, no tribunal, que está ali para ouvir suas palavras sem julgamento. Um povo que sempre respeitou todos os santos. Um povo que o acompanharia até o fim do mundo para ouvir suas palavras. Gente que bebe e come suas frases sem ressaca ou indigestão, mesmo que sejam palavras-cachaça e palavras-tamarindo. Porque este cronista vive em qualquer parte do seu coração.
Porque sacralizou os domingos, este cronista escreve, conta o que tem pra contar. Porque seus pecados, confessados na escrita, recebem perdão sem necessidade de ajoelhados padre-nossos e ave-marias. Mesmo correndo o risco das algemas em seus pulsos, este cronista conserva a liberdade dos seus dedos.
Este cronista se cala para não falar puta-que-pariu, caralho, foda-se. Fazer/falar puta-que-pariu, caralho, foda-se não removeria a acusação de nada fazer, só complicaria a situação do réu que, não bastasse nada fazer, quando faz algo ainda ofende seus acusadores. Então este cronista escreve que falaria, mas não fala. A escrita é o habeas corpus da palavraria. Quem não é sincero, sai da brincadeira correndo pois pode se queimar.
Este cronista escreve feito quem dá um ferrão, um coice, uma chifrada. Escorpião, carneiro, cabra. Este cronista não é gente, é bicho. Esta crônica não é texto, é gesto. Dança com você o que você dançar. É reconhecimento feliz de culpa no cartório. Deve, não nega: paga quando quiser. Quem deu, receberá.
Se este cronista não faz, e faz falta, não é ele que faz falta, a falta quem faz é quem tem a falta. Qual é a realidade se é sempre um sonho que invade? Este cronista não precisa nem é preciso, é só o espelho em que se afoga Narciso. Para este cronista, só um egoísta reconhece outro, só um ladrão reconhece roubo, só alguém que não faz nada reconhece um nada fazer. A cruzada deste cronista é um cruzado de direita na face oferecida ao beijo, se dá um riso, dá um tiro.
Este cronista espelha a beleza que vê no paraíso, se dá um beijo, dá abrigo. Este cronista não é santo, é solto, nenhum senhor o acompanha. Este cronista, em respeito, se cala. Quem lamenta a ausência da sua fala que aguente a dança sombria da boca livre de suas palavras.
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sábado, 1 de maio de 2010
IMAGENS NA PRAÇA, IMAGENS DA CIDADE [Ana Gonzalez]
Passava pela Praça da Sé, quando uma cena me chamou a atenção. Um casal de namorados sentados de frente um para o outro num banco, se olhavam, riam e se abraçavam. Parecia que não havia mais ninguém na praça. Mas eu estava lá com minha memória de uma cena assim. Essa cena eu já vivi, pensei. Já tinha sentido a proximidade de alguém num parque com verde e bancos. Era como se não houvesse mais ninguém.
Talvez os brilhos daquela época fossem diferentes dos que há nas águas dos espelhos desta praça. Nem o barulho da água que cai num pequeno véu de cerca de metro e meio é igual. Nem os pássaros, inúmeros, nem as nuvens do céu refletindo o brilho do sol agora atrás dos prédios. Passado e presente se misturam em meus olhos.
Mas os passantes me levam de volta definitivamente ao mundo atual de concreta materialidade. Vou seguindo meu caminho e vejo. Os passantes indiferentes aos mendigos. Estes, sentados no chão, nos bancos e muros, em grupos e conversando, ausentes das cinzas de um vulcão islandês invasor e de construção de uma usina escandalosa.

As altas árvores já nem aparecem tanto, em meio ao burburinho. Final de tarde de uma pequena multidão que corre entre os ônibus que se amontoam nas pequenas ruas que ladeiam a grande praça. Que é do povo, sim senhor. Pena ser dele também, o desconsolo de mais um dia cansativo de trabalho. Haverá ainda a sobra de uma esperança para amanhã?

Seguindo, procurei em vão aquele cantador sentado com um guarda-sol e seu violão. Não estavam lá ao pé da parede que ladeia os três arcos na Faculdade de Direito São Francisco. Senti falta de sua toada brasileira. O morador de rua, deitado, descalço apoiando a cabeça no pedaço de pano que lhe protege as mãos, ignora as dezenas de motos por entre o trânsito, com as luzes acesas.
Virei a esquina e descobri mais um pedaço da cidade. Rua que se abre em uma passarela que sobe para sei lá onde, caminho sem fim, e a arquitetura com o céu ao fundo, um dia que acabará fatalmente em céu escuro. Parece que meus olhos se cansaram de gente. Da dor e da miséria do cotidiano.

Mas continuo com uma sensação de encontro e de vida. Permanência da imagem do casal, talvez. Eles continuaram pelas ruas e suas personagens, numa memória subliminarmente avivada. A presença do mesmo sentimento de encanto amoroso de outrora. Talvez hoje direcionado às pessoas, aos mendigos e passantes. À criança de cabelos desgrenhados. A esta cidade que me reacende a alma. Pela decifração de um movimento, uma força quase ctônica, saindo do chão e subindo pelas construções. Saindo e enchendo todos os cantos, perpassando todos os vãos e buracos das ruas e interrogações dos indivíduos.
E este sentimento de mim para fora, essa quase alegria tão deslocada, paradoxal, abre-se para um espaço, um nada que cria sentido. Assim, um amor se espalhando pelo ar, pelos olhos, ruas e praças, pela cidade, pela vida.
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