CHUVA, SR. PICA-PAU >> Eduardo Loureiro Jr.


Irmã Admir (Pepeta)
a/c do Pica-pau
Caixa Postal, 44
Guariba - Colniza - MT
CEP 78335-000


Senhor Pica-pau, estou supondo que o senhor abriu esta correspondência, dirigida à Pepeta, e que a está lendo neste momento. Não posso julgá-lo, pois sei como é tentador abrir correspondência alheia, fazer descobertas, desvendar segredos. Para nós, humanos, é crime. Para os senhores pássaros, eu não sei; talvez seja até lei, passível de punição caso não seja cumprida. De todo modo, a correspondência está a seus cuidados, então não me parece de todo injusto que o senhor a abra. Afinal, ao cuidador cabe saber daquilo de que está cuidando. O senhor não me conhece, é compreensível que desconfie do teor da mensagem: pode ser algo perigoso, ofensivo. Eu até agradeço por ter esse cuidado com a Pepeta.

Quando comentei com um amigo que enviaria esta carta aos cuidados do Pica-pau, ele me advertiu que seria melhor mandá-la aos cuidados do Pombo-correio, que já tem mais experiência no assunto. Eu pensei, pensei... e lembrei da definição de Pepeta para o Céu e para o Inferno: "Céu é a comunicação sem barreiras. Inferno é a ausência de comunicação." E me perguntei por que o Céu estaria reservado só aos pombos-correios. Os pica-paus não são também merecedores da comunicação? Têm que ficar o tempo todo pic-pic, pic-pic, pic-pic... numa árvore? Não podem voar livremente com uma cartinha no bico, exercitar as asas, admirar a paisagem, fazer piruetas? Ah, por certo que os pica-paus merecem essas liberdades. Comuniquei a decisão ao meu amigo que, insistente, pediu que eu pelo menos confiasse o envio da mensagem a um pica-pau amarelo, que tem mais tradição poética, donabêntica, et cetera. Eu não sei a sua cor, Sr. Pica-pau, mas acho pouco elegante condicionar a entrega dessa mensagem ao tom das suas penas. Meu amigo há de conformar-se.

Mas e a carta, o senhor deve estar se perguntando.


Brasília, 28 de setembro de 2008

Querida Pepeta,

Há quanto tempo! E faz tão pouco. De tanto pensar em você, de tanto escutar do lado de dentro do ouvido as suas sábias palavras, o seu desprendido riso e até o seu silêncio (quando crescer, quero ter um silêncio desses), de tanto lembrar e me espelhar em você, parece que você não está longe nem no espaço nem no tempo.

Escrevo porque chove em Brasília. Aliás, escrevo porque choveu. Não a primeira chuva da estação, porque nessa eu me encontrava dentro de casa, protegido por teto e quatro paredes. Foi a primeira chuva da minha pele, aquela que me pegou desprevenido num final de tarde, que me surpreendeu distraído, caminhando e vendo o pôr-do-sol. No começo, pensei que tivesse sido alvo do xixi de algum passarinho (nada pessoal, Sr. Pica-pau) ou que um orvalho atrasado tivesse enfim despencado do alto do Guapuruvu, que já perdeu sua linda copa amarela. Mas não, era chuva mesmo. A delicadeza inicial foi logo substituída por uns pingos grossos que nem espocavam quando caíam na minha pele. A pele da gota escorregava na minha própria pele feito uma criança descendo num tobogã.

A chuva é um rio que corre entre o céu e a terra. E sem mais nem menos, nós, os bípedes, estamos nadando em pé, nem a favor nem contra a corrente, simplesmente atravessando o rio. Às vezes, apressados para cumprir a travessia e chegar em casa. Outras vezes, dedicados ao prazer de nadar, prolongando a alegria de estar na água que veio do Céu. A chuva é o rio que vem da comunicação sem barreiras. A chuva é Palavra de palavras: sussurra, geme, ri, declama... e cada um ouve o que quer. O que a chuva diz mesmo, pode-se até saber. É só ficar ali, molhando, encharcando, plantando o silêncio pra colher o som. Então se pode ver a mão que entorna o balde que é a nuvem. E se pode ouvir seu sorriso de satisfação por estar banhando suas crianças — o final da tarde é mesmo um bom horário para um banho.

O Fabiano tem uma canção que diz "a chuva vai fazer a gente se encontrar". E ele escreveu certa vez que "cartas são encontros que a gente tece". Então minha mente lógica, matemática, só pode concluir, querida Pepeta, que esta carta é uma chuva que tenta restabelecer o nosso Céu para além das lembranças do ouvido interno.

Quando sua nuvem estiver pronta, mande também a sua chuva daí.

Aquele abraço molhado,

Eduardo Jr.

P.S. Não se surpreenda se lhe chegar aí alguma outra correspondência de algum leitor meu. Aliás, se surpreenda. É realmente de surpreender receber uma cartinha de quem não se conhece. É a surpresa boa do Inferno se transformando no Céu.





Comentários

Aldeneides Leal disse…
Tive o prazer de ler um texto que se não me engano chama-se As mulheres de Libra, adorei d+, postei ele no meu blog não resisti. Me senti tão bem qndo li, espero que muitos pensem assim como vc. Qndo puder faça uma visitinha... abraço
Anônimo disse…
Oi Junoca,
Mais uma vez linda crônica, carta, experiência de cèu...!
Deu prá sentir "de dentro do ouvido, as sábias palavras, o desprendido riso e o silêncio da Pepeta". Saudade, gostosa de sentir, de vocês dois.
Abraço carinhoso,
Tia Monca
Olá, Aldeneides! Que bom que gostou do texto. Tenho certeza de que muitos pensam como eu sobre as librianas. :)

Grato, Tia. Daqui a pouco eu chego por aí para amenizarmos as saudades e chegarmos mais perto do Céu. :)
Anônimo disse…
Eduardo, cartas, chuva, saudade, tudo é instrumento para o poeta extrair a emoção do leitor que, como eu, ficou aqui, com aquela vontade mágica de ter conhecido um pouco mais da Pepeta.
Oi, Marisa! Eu já estava pensando que você tinha tirado férias do Crônica do Dia. :) Grato pelo carinho de sempre e de cada vez. E escreve pra Pepeta, ela vai gostar de receber cartinha sua. :)
Carla Dias disse…
Nunca, durante minha jornada de fascinação por céu e chuva, por cartas levadas e lidas ou não, pensei que leria texto tão bonito. Qualquer Pica-pau levaria essa chuva no bico, só pra despencá-la naquele abraço molhado escrito na folha do céu.
Carla, qualquer dia desses o senhor Pica-pau lhe leva no bico assim como suas palavras afiadas me levam no seu. :)

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