NOVEMBRO >> JANDER MINESSO
– Tá tudo bem.
Desde que entrara no carro, aquela era a única frase que saía da sua boca. Mas ficou em silêncio por quase todo o trajeto, se despedindo das luzes noturnas de uma cidade que mal reconhecia. Depois de oitenta e cinco anos, tinha os olhos de uma criança estrangeira.
Não estava tudo bem. Horas antes, agonizava na própria cama, procurando espaço para o ar entre o tumor e os anos trabalhando em meio ao pó. O que menos queria era voltar para o hospital. Esbravejou contra a insistência da família tanto quanto pôde. Dizem que a gente sabe quando é a última vez que veremos nossa casa. Acabou cedendo. Os filhos fizeram a mala, ele foi colocado no banco de trás e partiram. A nora dirigia e o caçula o vigiava. Ele olhava pela janela, fazia um sinal de joia com a mão e, vez por outra, insistia que estava tudo bem.
Entrou direto pela emergência por causa da falta de ar. De madrugada, o pronto socorro dava quase uma sensação de paz. Precisou de ajuda para mijar uma ou duas vezes, mas em geral não parecia melhor ou pior do que antes. Quando abria os olhos, o brilho de criança continuava ali, admirando tudo pela primeira e última vez. Sua cabeça começava a se desligar da lógica e das pequenezas do cotidiano. Estava cansado. Os enfermeiros também estavam cansados, só que de outro jeito. Em voz baixa, eles planejavam suas folgas.
O primeiro hemograma acusou uma sobrecarga renal. Outros testes confirmaram problemas no fígado, nos pulmões e em todo o resto. A doença se espalhara rápido nos últimos meses e o oncologista chefe já havia dado a notícia. Às duas e meia da manhã, conseguiu um quarto na UTI. Oxigênio, antibióticos de amplo espectro para uma possível pneumonia, morfina e boa noite. Se alguém precisasse de um travesseiro ou cobertor extra, estavam no armário. E em caso de qualquer necessidade, era só apertar o botão vermelho.
Deitado, precisou de ajuda para mijar de novo. Será que sabemos qual é a nossa última mijada consciente? Depois do alívio pareceu dormir, apesar do cenho franzido. As janelas da Terapia Intensiva davam para o jardim interno e a rampa do estacionamento. Esperança e desalento dançavam uma música torta sobre a corda bamba enquanto os plantonistas evitavam qualquer conclusão precipitada. Numa escala de gravidade, diziam que aquele caso era um nove. E de qualquer maneira, não era por falta de aviso.
A serenidade induzida pelos remédios durou pouco. Começou como um leve espasmo da mão direita, onde estava o acesso. Logo o movimento se amplificou. Ele tentava ajustar a máscara, sempre buscando mais ar.
– Pai, usa o braço esquerdo, por favor. O acesso tá no seu braço direito.
– O acesso… tá no braço… direito.
Repetia a frase numa cadência lenta e regular. O acesso. No braço. Direito. Mesmo assim, continuava tentando arrancar a máscara. Precisaram apelar para o botão vermelho. A enfermeira aumentou a dosagem de oxigênio e então chamou a paliativista: uma senhora de cabelos pretos demais para serem naturais e olhos de cobalto. Ela decidiu colocá-lo na bomba de morfina e prometeu retornar depois de uma hora. Quando voltou, uma luz laranja começava a rasgar o horizonte.
– Pode ficar tranquilo. Ele não está sentindo nenhum desconforto.
Outra oncologista da equipe veio logo atrás, confirmando que a vida estava seguindo seu curso. Ele acordou poucas horas depois, quando chegaram para dar o banho. No começo, tentou protestar, agarrado a um fiapo de orgulho. De súbito, resignou-se e pareceu até gostar da ideia. Naquele momento, não sofria mais. Era o horário da troca de acompanhantes, então fez um sinal de joia para se despedir do caçula que, segundo diziam, havia herdado os olhos do pai.
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Imagem: acervo pessoal


Comentários
Amo vc, e seus olhos herdados do seu pai…