E SE EU TE DISSER QUE JÁ NÃO CAIO MAIS NESSE TEATRO? >>> Nádia Coldebella



— Se você quiser, pode me doar um computador — ele disse meio sério, meio brincando, parecendo ignorar completamente o fato de ela estar furiosa com toda a conversa até ali.

— O quê? — fazia tempo que todo o pudor e veludo da língua dela haviam sumido. As humilhações dos últimos anos resultaram numa língua solta, que despejava o que passasse pelo cérebro sem nenhum filtro.

— Se você me der um dos computadores, eu aceito. Tô precisando. — ele continuou. Ela bufou, espantada com tamanha cara de pau. Foi ela quem havia comprado. Nesse ponto, já estava cansada da conversa esquizofrênica, que seguia de um tópico absurdo para outro, sem a mínima lógica.

Tudo havia começado com a suposta má educação da advogada, que ligara para ele várias vezes tentando negociar sobre sua saída oficial da casa. Ele estava enrolando — não queria largar o osso — mesmo declarando que já tinha iniciado “uma vida nova”. Essa vida nova incluía novas contas na rede social, repletas de fotos com a nova namorada, dezessete anos mais jovem, e o bloqueio total de acesso aos filhos e à esposa, que desesperadamente tentava definir a situação.

— É brincadeirinha — ele recuou, vendo-a próxima à explosão — esquece o que eu falei. — Ela bufou novamente; ele, novamente, ignorou. — Eu tô fazendo as contas… tem o computador, aí tem que alugar apartamento, daí fiz orçamento na Shopee para os móveis da casa...

A conversa já tinha passado por acusação, ofensas mútuas, lavagem de roupa suja e ameaça. O tópico agora era a justificativa do porquê ele não tinha condições de deixar definitivamente a casa da família, embora dormisse no mezanino da garagem e permanecesse ali dois ou três dias da semana. O restante estava na casa da vida nova.

— Aí tem o carro que eu comprei, tem que pagar, tem os financiamentos, tô devendo um monte e… — ele continuou justificando todos os motivos nobres que, além de impedir a mudança, também impediam que perguntasse se os filhos precisavam de alguma coisa e colaborasse com seu sustento.

A mulher estava exasperada. A educação tinha ido pro ralo.

— Não quero saber. Quero que você saia. Me dê uma data.

— Eu tenho 47 anos, não vou morar naquela casa velha — ele referia-se à casa de sua infância, herança da mãe morta. — Eu preciso de um lugar decente, mobiliado, pra receber as crianças. Graças a Deus eu construí minha vida com você, que é uma pessoa excelente.

Essa era uma tática habitual, o elogio para manipular. Habitual e infantil, porque ela já tinha PhD nisso.

— Você tá me enrolando — agora ela não bufava, ela mostrava as presas. — Faz um ano e meio que a gente tá nisso, que você tá me enrolando. Eu tolerei por respeito ao luto, porque você pediu, mas era pra ser seis meses, já faz um ano e meio.

— Eu não tô enrolando — ele se rebelou, mas sem convicção.

— Você tá enrolando e tá enrolando a advogada. — o sentimento era de uma coisa que já não tinha nem nome — Ela te pediu uma data e você não deu.

— Ela foi desrespeitosa, só que foi educada. Ela disse que, se eu não saísse, ia pro litigioso. — Ele elevou o indicador, cerrou a mandíbula e elevou a voz, entoando as palavras de forma raivosa, e com uma certa melodia para impactar o interlocutor. O gesto teatral, conhecido por ela há mais de 20 anos, para demonstrar indignação. — Eu não consegui dar uma data, eu tinha um monte de coisa pra fazer — ele acrescentou mais uma pitada de indignação para amplificar o efeito — Eu tinha marcado horário com o neurologista — enfatizou a palavra "neurologista", quem sabe ela tivesse compaixão e cedesse? Mas a cara dela era uma parede — Eu tinha outras consultas… — Ele tentou mais um pouco, mas, como desse mato não saía cachorro, mudou repentinamente o tópico. — Estou cheio de trabalho, tendo que trabalhar à noite, porque outro dia o Neto, ele tem depressão, também está se separando da mulher, ele vem lá da outra cidade, ele não aguentou a pressão e jogou o carro em cima do caminhão…

— Então você está me dizendo que vai jogar o carro em cima do caminhão porque não aguenta a pressão? — Ela já tinha imaginado, quando tudo começou, que, se se tornasse viúva, tudo seria mais simples. Sem briga, sem divisão de bens, sem estresse... mas afastou a ideia, tinha filhos e, quando era estudante, não colava porque tinha medo de ser pega, então imagina assassinato!

— Não, não, não é isso, eu só falei porque…

Ela já tinha aprendido que a melhor forma de lidar com esse tipo de conversa era desmascarar a manipulação.

— Se não tivesse importância, você não tinha trazido para a conversa. Você tá tentando atrair minha compaixão, mas isso não me interessa. Você está tentando me manipular desde o começo dessa conversa. A advogada te pediu uma data. Dê a data.

— Estou vendo o tipo de gente com quem você se aliou… uma mulher que já foi separada.

Eis outra forma de manipular: desqualificar quem pode te defender.

— Não fala mal de quem você não conhece! — ele a conhecia, isso não funcionaria — Você não respeita nenhum dos nossos acordos, então ela está aqui para fazer você respeitar. Dê a data.

— Você não sabe como tá difícil arrumar casa. Sabe quanto é um aluguel? O Léo, aquele corretor, me falou que não tem casa… e a casa lá da minha mãe, o Léo falou que quem alugou precisa…

Mais um blablablá, só que esse machucava.

— De novo isso?

Não era tópico novo. O discurso de “estão precisando de ajuda, então vou botar essas pessoas na casa velha” foi um dos pontos da ruptura da relação, porque quem foi colocado lá foi uma mulher por quem, certo dia, ele declarou estar apaixonado, movendo todos os esforços e reformando o local para que ela pudesse morar lá. Isso aconteceu logo após a morte da mãe dele, sogra dela. A relação com a mulher era confusa e ambígua e o discurso era “eu estou fazendo um favor, é uma família que precisa, tem criança pequena”, mas o resultado disso foi um endividamento impulsivo. Nessa época, a esposa ainda lutava, mas ele dormia frequentemente fora de casa, com a desculpa do luto. Ela dizia: “Volta, você tem família. Não gasta esse dinheiro agora, espera, aluga como está e depois do luto você decide.” Mas ele não ouviu porque, atrás do luto, havia culpa e uma paixão momentânea por carne nova. Naquela época, logo depois da morte da mãe, ele parecia surtado, procurava todo tipo de pessoas, mas não ficava em casa. Abandonou completamente a família à própria sorte, inclusive financeiramente. Mais tarde, disse que a esposa o abandonou.

O fato era que o casamento estava falido de todas as formas possíveis há quase dez anos, era um paciente terminal que nem transava, que deu o último sopro quando a velha morreu. Naquele túmulo, tudo foi enterrado, mas alguns mortos ainda andam por aí.

— Mas isso não me interessa. — A expressão dela nublou. — Eu não quero ir pro litigioso, mas você não tá me dando saída.

Nesse momento, imagens desfilaram na mente dela — essas que chegavam involuntariamente em momentos aleatórios do dia: as pessoas perguntando sobre a outra, quem era a mulher que ele levava no carro, gente a parando nos lugares, inclusive no trabalho, para perguntar, dizendo “acho que você deveria saber”… Tudo antes do dia fatídico, no dia anterior ao velório, quando ele disse: “Eu tenho o direito de ser feliz, quero me separar”, e ela concordou, porque ser feliz é um direito humano inalienável e intransponível. Só que agora, a raiva eclodiu, mas ela conteve.

— Eu também não quero ir pro litigioso — ele disse de forma monótona — é muito caro, não tenho dinheiro.

— Então me dá a porra da data. — Ela falou estridentemente agora.

— Eu tinha uma proposta pra você, mas você não vai aceitar — Era impressionante como esse homem parecia não ser afetado pela realidade. A voz dele era calma, casual, como se discutisse uma situação aleatória e desimportante dos tempos de casados. Ela suspirou, impaciente, sabendo o que vinha. — No teu trabalho, você consegue pedir transferência, poderia ir pra lá… — “Lá” era a outra cidade, onde ele passava parte da semana e onde residia a nova vida. — Seria bom pras crianças, lá a gente…

— A gente quem, cara-pálida? — Ela riu sarcástica — Não tem mais “a gente”. Não tem mais brincadeira de família feliz. Seu caminho não é o mesmo que o meu.

— Eu te entendo, eu te entendo — a condescendência dele a matou.

— Entende porra nenhuma. — o palavrão tem uma função aliviante da psique que é impressionante — Você só acha que entende, mas não tem a mínima ideia. — ela queria chingar mais, estava por um fio.

Então ele fez a pior coisa que poderia ter feito: riu na cara dela. E depois disse a pior coisa que poderia ter dito:

— Você tá falando tudo isso porque tá com ciúme. Eu gosto de você e, no fundo, no fundo, você ainda me ama.

Ela foi precisa:

— E se eu te disser que eu já não caio mais nesse teatro?

Depois ela surtou.  Um surto assertivo, frio, cortante, devidamente gravado e enviado pra advogada depois. Ele tinha lógica no que dizia, porque até pouco tempo atrás, ela aceitava, perdoava e fazia cara de paisagem porque amava realmente. Mas agora, não tinha mais amor, só decepção e um desejo insano de dar o fora daquela situação destrutiva o mais rápido possível. Então as palavras engasgadas jorraram — entenda o leitor — calmamente, bem declaradas, lentamente, com a intenção de dilacerar.

— Cara, você perdeu a noção? Nunca ouviu falar que amor tardio é que nem capim? Não vale nada? Amar você? Ter ciúmes? O que você me fez passar nestes últimos três anos foi pior do que todo o resto do casamento. Você me decepcionou muito. Você quebrou uma coisa dentro de mim que nunca mais vai ser consertada. Eu nunca mais vou me casar. Eu vou viver por mim mesma. — ela escorregou no autocontrole aqui — Que bosta, meu Deus do céu, eu não dou mais conta. — recuperou e prosseguiu, incisiva — Eu tenho pena dessa mulher que você tá agora. Durante todos esses anos de casada, você me chamou de um monte de palavrão. Você criticou meu corpo, me chamou de velha, agiu como se eu fosse idiota. Me humilhou e me subjugou. — ela falou ainda mais pausado — Agora você achou uma mulher que é mais nova que eu, mais bonita que eu e mais submissa que eu… Ela é tudo o que você pediu, tudo o que você jogava na minha cara que queria que eu fosse. Agora que você achou alguém dentro do seu modelo, dos seus padrões, não tá bom pra você. Você quer voltar?

— Quem disse que eu quero voltar? — a voz dele saiu esganiçada.

— Se você não quisesse voltar, por que estaria me enrolando? — Ela torceu a faca.

— Nossa… — ele riu, rendido e admitindo a intenção. — Nesse ponto você é foda.

Ela suspirou, muito triste, mas com a vontade de matar renovada. Reforçou o propósito de se manter fria. Em função da saúde mental, ela treinava frieza constantemente. Segurou a vontade de matar, mas não as palavras, ditas em voz baixa, com traço de emoção contida:

— Eu  nunca vou voltar com você. — Ênfase no nunca — Cara, você é um mentiroso, um hipócrita. Você tem ideia de quanto eu fui humilhada? Sinto muito, é muita mágoa. Eu tô cansada da sua hipocrisia, você não percebe? Olha pra você, pro seu comportamento. Em que mundo você vive?

— É… eu não tô bem. Eu to indo na igreja, você sabe — nova justificativa, também conhecida — Tenho que ir no psiquiatra, tem um remédio que custa 200 reais…

— Isso não tem a ver com psiquiatra, tem a ver com caráter. — Ela se esforçava muito pra manter a frieza, senão não haveria impacto — Você tem que olhar pra dentro e se corrigir com a verdade, não usar a religião como desculpa.  Você diz que tá indo na igreja, que tá buscando melhorar, mas, até você se olhar com a realidade absoluta, a religião não vai fazer nada por você, vai só te acobertar. —  Ela inspirou um pouco mais profundamente, estava sem ar —  Desde o começo desta conversa você tá tentando me manipular. Você até me ameaçou, e eu tô sendo clara com você. — pausa estratégica — Eu já falei pra você: você é muito idiota! Você acha que me importa outra mulher, mas não me importa. Eu tenho pena dela. Você fica fazendo jogo duplo, tipo esses dias, me chamando pelos apelidos do casamento. Gerou mal-estar pra mim, pras crianças.

— Eu só queria deixar o clima mais leve. — Como ele conseguia? Ela realmente se espantava.

— Mais leve? — ela se impressionava com a capacidade que ele tinha de achar que esse tipo de comportamento poderia soar natural. Era mesmo impressionante — Você fica com esses joguinhos, tentando me manipular.

— Não é manipular, eu tenho sentimento — a indignação dele voltou, mas só na superfície. Os sentimentos dele geralmente eram rasos, ela só descobriu isso muito tarde. Ele dificilmente se aprofundava em alguma coisa. Era comum ele explodir, xingar e humilhar pra se aliviar, e depois ficar espantado com todo mundo magoado quando, pra ele, já estava tudo bem. Foram anos assim. Então esse “sentimento” todo que ele dizia ter só mereceu uma reação dela.

— Ha-ha-ha — os “has” foram pronunciados como palavras.—  O único sentimento que você tem é medo. Você tem medo de largar o osso. Você não tem sentimento por mim.

— Meu sentimento é diferente. Eu tenho respeito. — Mais um ha-ha dela.

— Respeito eu imagino que você desconheça o conceito, senão cumpria os acordos. Olha, nao faz sentido, você não me ama. Eu nunca fui a mulher da sua vida.

— Ah, nunca foi… — esse tom ela não soube bem identificar, um misto de mágoa, sarcasmo e zoeira.

— Nunca fui. Eu fui conveniente. E conivente. Se você tivesse achado outra mulher que tivesse mais dinheiro, fosse mais magra, mais jovem e mais submissa, você teria me chutado antes.

Ele negou com a cabeça. Mas ela não acreditava nele, em nada do que ele dizia. Ela tinha visto a mentira jorrar da boca desse homem. Houve um momento em que se sentiu enlouquecer — ele mesmo fazia questão de insinuar isso —  porque não conseguia separar mais a mentira da verdade. Mas agora sabia. Tudo era mentira.

— Eu procurei outra porque eu tava sozinho. Você me abandonou.

Ele a culpava de não ser parceira quando a mãe dele adoeceu, mas ignorava o fato de que ele se isolou, buscando consolo fora do lar, deixando a mãe para ela cuidar. Houve um momento que, por ser tão ignorada, ela desistiu. O outro abandono em questão tratou-se da viagem dela com os filhos, enquanto ele permaneceu na casa por dez dias, ocorrida meses após a morte da mãe dele. Naquela época já haviam decidido a separação, mas ainda morava na casa. Havia pedido um prazo pra se resolver.

Ela notou que ele encontrara outra mulher assim que chegou. O comportamento dele falou. Mas o fato é que não se importou, era natural que ele seguisse em frente dado a necessidade dele de não ficar sem companhia feminina. Só que ele, que já mentia, continuou mentindo, de forma deliberada, achando que tudo estava sendo engolido e acreditado. O que magoou não foi ele seguir em frente, foi ele mentir sobre isso pra manter ela de refém.

— Eu nunca achei que você fosse mentiroso, mas você se revelou. — Agora ela se emocionou, mas era decepção, tristeza e nojo. — As mentiras saíam da sua boca com a mesma facilidade que você escova os dentes. — Ela esfriou — Agora analisa comigo o teu comportamento. Eu fui uma idiota, fui dependente, tive medo de ficar sozinha; mas a sua dependência era apenas do conforto que eu te proporcionava. Na hora que eu disse não, que eu me fechei, você me chutou com muita facilidade.

— Não é bem assim… nem é bem um namoro, eu só tô conhecendo ela. Ali é difícil...

Nossa, que nojo, ela pensou. Era impressionante esse homem. Como ele conseguia manter essa fala? Ela tinha então que sentar e aceitar?

— Não me importa. — Frio, cortante, azedo, mas pausado e calmo. Ela repetia pra si mesma esse mantra, porque sabia que ele absorveria apenas 40% e por algumas horas, apenas. — Mas eu tenho pena dela. Ela é a outra. Uma mulher que está com um homem que, no papel, ainda é casado e que não consegue deixar a casa da família porque não quer largar o osso é a outra. Porque, se você estivesse fora de casa, ok, vida que segue, a gente resolvia a papelada depois. Mas você está levando ela em banho-maria há dez meses, fica em cima do muro. A sua postura impede que eu e ela avancemos. Analise: você é confiável?

— Eu tenho problema psicológico… — uma fala típica para captar a pena do interlocutor, mas, por baixo dela, havia muito sarcasmo.

— Que problema psicológico o quê? — Ela explodiu. Foda-se o autocontrole, agora estava indignada — O que você tá procurando? Você busca o que te dá melhor vantagem. Sempre foi assim: era assim comigo, é assim agora. Na hora que você achou ela, você transou com ela, ficou na casa dela, dormiu com ela, mas agora ela nem é tudo isso? Pra que ela serve? É um depósito de esperma?

— Não precisa falar assim… — Ele baixou a voz e os olhos. Estava envergonhado. Ela chegara ao ponto.

— Olha o seu comportamento! Você tratou essa mulher igual a uma prostituta, porque você foi lá, transou com ela, ficou na casa dela, usou ela, e agora não quer largar lá e não quer sair daqui. Se você pudesse, você ia manter as duas.

Ele riu de forma cínica. Como eu disse, as emoções eram superficiais. A vergonha durou três segundos.

— Você sabe que minha origem é árabe, né? — Ele estufou o peito, abriu os braços e deu um sorriso canalha.

— Ah, vai tomar no cu. — que nojo.

— Olha a falta de respeito…

— Você sabe o que é respeito? — a indignação era grande. Ela tremia, mas se esforçou pra retomar o autocontrole. — Você tratou essa mulher igual lixo. Você acha que tá certo? Você tá tentando não sair daqui porque, na sua expectativa, eu posso mudar de ideia. Mas o certo você não tem dignidade pra fazer: sair daqui, assumir ela e negociar o divórcio comigo.

— Eu não sou assim, não sou má pessoa. — a autocondescendência que ela conhecia muito bem, que sempre surgia quando ele não conseguia olhar pros próprios erros. Era uma espécie de autocomplacência, um narcisismo disfarçado de fraqueza. Ele não era uma pessoa má, os erros dele eram contornáveis, a culpa sempre era dos outros.

— Não, você é a porra de um egoísta! — A voz dela se elevou — Eu nem sei se essa mulher gosta de mim ou não, mas eu sou solidária, eu tenho dó dela. Porque pra mim tá decidido. Mas, enquanto você tá em cima do muro, ela tá fazendo o papel de “a outra”. — ela respirou — Seja digno. Você nem assume, nem termina; você travou toda a minha vida, não me deixa seguir em frente. Você tá pensando com o quê? Com o pênis? E depois vem falar de Deus e religião pra mim.

— Ah, eu não sou perfeito…

— É, e você é burro também. Ou o que é isso? — de verdade, se ele entendesse alguma coisa de empatia, ia ver confusão nos olhos dela enquanto ela tentava achar uma palavra para entender o comportamento dele. Era impressionante esse homem, essa falta de noção, essa falta de senso, essa coisa que ela não conseguia dar um nome. — Olha pro teu comportamento. Você chega aqui e aponta o dedo pra mim. Você me acusa. Me culpa. Mas olha o teu comportamento. Você entra nessa casa e finge naturalidade. Você quer que eu ache tudo isso normal, que as crianças ajam normal. Analisa. Você tá dentro da igreja, disse que tá melhorando, mas você não tá aprendendo nada. Você me acusa e joga coisas na minha cara, mas acha que Deus tá contente com você? — Ela não queria meter Deus na história, ele não tinha nada a ver com o problema dos dois, mas ele já tinha se gabado lá no começo da conversa de quanto abençoado ele estava sendo, de como se sentia melhor e se tornara uma pessoa melhor. — Aí você tem medo de ter crises de ansiedade, de pânico. Sabe de onde vem isso? Das tuas fraquezas. Porque, pra gente crescer, a gente tem que suportar a dor, e você só quer prazer.

Ah, e como esse miserável sempre quis evitar tudo o que o incomodasse e ela sempre anuiu! Ela se arrependia amargamente de ter fechado os olhos, de ter paralisado, de ter sofrido. Devia ter agido rápido, devia ter feito um corte cirúrgico lá atrás. Matar o casamento falido sem vestígio de sangue. Agora não estaria se debatendo no próprio fim. Ela continuou — hoje sairia tudo.

— Você só tá pensando no que é bom pra você e tá me sacrificando, sacrificando seus filhos e sua namorada. No final das contas, tudo gira em torno de você. — A emoção tomou conta, ela fez uma pausa, respirou — E eu tô dizendo não. Não. Girou anos em volta de você, até quando as crianças adoeciam, era você. Eu não dou mais conta. — Respirou de novo, uma dor explodiu no peito, querendo ser liberada, mas ela segurou — Não aguento mais teu ego inflado.

Ele estava achando a próxima frase, mas ela não deixou. Precisava sair dali, o ar estava escasso. A cara dele incomodava, o peito dela doía.

— Eu quero uma data — ela disse, se levantando e indo pro quarto.

Ele não deu a data. Enrolou. Disse que ia ligar pra advogada. Ela já vislumbrou o divorcio litigioso iniciando na próxima semana.

 A decepção era enorme. Ainda bem que fora ao psiquiatra. Precisava se medicar, senão não aguentaria até o final do dia sem desabar.




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