NÃO SABE DE MIM >> Ana Raja


Não sabe de mim. 

Nem do meu passado, tampouco do meu futuro. Seu vício é o presente. Vento socando o meu rosto. A terra embaixo das minhas unhas e o sangue misturado ao barro causam espanto... eu sei. 

Os berros vomitados de minhas entranhas assustam. Entendo seu tapar os ouvidos. Grito meu desespero para você, que me segue pela rua, assim, de longe. Estende os braços para amparar, mas não me alcança. O longe pode ser um obstáculo. Caio várias vezes, me arrasto, me esfolo e você?  Passageiro do meu presente, um observador. Dos seus olhos, lágrimas rasas brotam em sinal de defesa, repulsa, dó. 

Na segurança de sua casa, você se distrai com sua música preferida, cantarola, esquece de mim por alguns minutos. Então volta, assiste novamente ao fim; ao espanto emprestado do antes daquela canção. Salva em arquivos de computador a cena capturada durante a tragédia em movimento: eu debruçada sobre o corpinho miúdo dele, que ainda ontem me beijou antes de sair para o trabalho, um adulto em construção. Na vida, aqueles lábios na minha face provocavam em mim o sossego de mãe. 

E agora?

Você não sabe de mim. 

Na minha retina ficará para sempre gravada a feição do espanto e da dor. A gente só entende o último momento quando ele chega. Não teve beijo nem sorriso. Enterrar meu filho, reconhecendo o pavor tatuado em seu belo rosto, foi morrer um pouco junto. Tão parecido com seu avô, meu menino! Queria te dar o meu colo até o medo passar, falar baixinho: preocupa, não, a mãe tá aqui.

Nem do meu passado nem do meu futuro.

Saber pode doer.

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As dores delas, primeiro livro de Ana Raja, está a venda no www.editoraurutau.com.

anaraja.com.br

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