A gente se acostuma ou Paris Lado B >> Alfonsina Salomão



Quando digo que moro em Paris, os olhos das pessoas brilham. Com frequência elas me pedem para falar mais sobre como é morar na Cidade Luz. Pois bem, morar aqui é bom, depois que a gente se acostuma com certas coisas. Por exemplo, a gente se acostuma a ouvir “bonjour” como uma forma de recriminação. A entrar na loja, pedir “perdão” para a vendedora que está de costas e ouvir um “bonjour” áspero e grosso, porque ousamos lhe dirigir a palavra antes de dizer “bonjour”. A gente se acostuma, então, a dizer “bonjour” à vendedora antes de tudo e a ser completamente ignorado, porque não dissemos “perdão” primeiro. A gente passa, então, a experimentar as duas fórmulas alternadamente, sem jamais conseguir escutar um “bonjour” amável da vendedora. Por fim, a gente se acostuma a ser sistematicamente maltratado pelas vendedoras e vendedores da cidade, que agem como se estivessem fazendo um enorme favor ao nos dar um mínimo de atenção. 

A gente se acostuma a chegar perto de um vendedor, ou do caixa de supermercado, ou do responsável da informação no metrô, ou qualquer outra pessoa cujo cargo consiste em atender e informar, e a ficar completamente calado até a pessoa terminar de fazer o que estava fazendo no momento em que chegamos: contando dinheiro, dobrando uma blusa, olhando o telefone, dando uma explicação comprida a outra pessoa. Mesmo que nossa pergunta seja pontual, não há o que fazer, senão esperar. O francês é incapaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo. Por isso deixa claro que nossa intervenção é mal vinda e digna de repressão. 

A gente se acostuma às pessoas que ficam em pé à nossa frente no ônibus ou metrô, nos olhando de cara feia, esperando que nos arredemos para que ela se sente no banco ao lado. Por alguma razão obscura, essas pessoas são incapazes de dizer “licença”, elas preferem nos encarar persistentemente até chegarem aos seus fins. A gente se acostuma com um francês reclamando abertamente se hesitamos entre um croissant e uma baguete na fila da padaria. A gente se acostuma também com os franceses que, de maneira voluntariamente irritada, fazem “chhhhh” para que paremos de falar no cinema, pouco importa se estamos falando baixinho e na tela ainda estão sendo exibidas propagandas.

A gente se acostuma a ser mal atendido pelos garçons e garçonetes da cidade. A tomar café porque um chá ou chocolate quente custam absurdamente caro. A receber a conta junto com o café e a pagá-la antes de tomar o café. A gente se acostuma com restaurantes em que as mesas são muito próximas umas das outras e, às vezes, até mesmo a dividir a mesa com desconhecidos. A beber água da torneira porque uma garrafinha de água com gás custa o mesmo preço que uma taça de vinho. A gente se acostuma a pagar o olho da cara por pratos com nomes poéticos e apresentações impecáveis, para sair do estabelecimento com fome. 

A gente se acostuma com dias cinzas e chuvosos. Se acostuma a sentir frio nos lugares mal aquecidos. A se vestir com elegância e usar sapatos que apertam e casacos pesados que não esquentam, afinal de contas, estamos em Paris. Se acostuma a contornar os inúmeros cocôs de cachorro espalhados pelas calçadas da cidade. E a limpar os sapatos resignadamente em uma poça d’água quando por ventura pisamos em um deles. A gente se acostuma a visitar amigos que moram no quinto andar em velhos prédios sem elevador. Se acostuma com apartamentos pequenos demais com aluguéis caros demais. A ouvir a vizinha recém-divorciada gemer de prazer com o namorado novo no meio da tarde, e seus filhos correndo acima das nossas cabeças durante todo o fim de semana, em apartamentos mal insonorizados. A gente se acostuma até a chamar “rato” de “camundongo” com eufemismo, porque os parisienses acham que esses animais são bonitinhos e não se incomodam em vê-los passar no meio da sala. E a gente também se acostuma a ver uma ratazana correr na nossa frente para atravessar a rua de vez em quando.

A gente se acostuma com médicos apressados, que vão direto ao assunto e não perdem mais de quinze minutos com uma consulta. Se acostuma a dizer quais sintomas está sentindo sem rodeios, para não fazer o médico perder seu tempo precioso. Se acostuma a tirar a roupa na frente da escrivaninha da ginecologista e a se deitar para o exame na maca que fica ao lado, como se fosse a coisa mais natural do mundo. E a ouvir algo do tipo, “você pensa que veio ao dentista?”, se antes de se acostumar a gente pergunta se é para tirar a roupa ali mesmo. A gente se acostuma a tomar muito cuidado para não incomodar o médico com perguntas descabidas. E a ouvi-lo dizer sem o menor tato qual mal nos acomete. Se acostuma até com o mau humor do médico se, feliz com o resultado dos exames, concluímos que tudo está bem. Pois, nesse caso, ele é capaz de responder “mas isso não quer dizer que tudo estará sempre bem!”. 

A gente se acostuma a conjugar todos os verbos com o “vous”, porque é muito grosseiro tratar uma pessoa mais velha, ou desconhecida, ou hierarquicamente superior, com a familiaridade do “tu”. Para depois se acostumar a ver outras pessoas mais bacanas e despojadas nos olharem como se fôssemos extraterrestres caretas porque a tratamos com “vous” e não “tu”. Para na sequência tratarmos um adulto da mesma idade que a nossa com "tu", em uma situação completamente informal, apenas para vê-lo crispar todo o corpo e nos dirigir um “vous” seco que não deixa dúvidas, fomos longe demais. Então a gente se acostuma a acertar algumas vezes, errar outras, mas, sobretudo, a estar sempre naquele lugar incerto que não nos deixa esquecer que somos estrangeiros. 

            A gente se acostuma com tudo isso e muito mais. Mas tirando isso, morar aqui é muito bom.

 

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