VADE RETRO >> Albir José Inácio da Silva
Joca tinha sim as suas superstições, mas não admitia. Pior,
sentia vergonha delas, negava-as. Mais que isso, fazia inflamados discursos
contra as crendices que o cercavam. Por isso fingia que aquele número pendurado
no peito não o incomodava.
Treinara com afinco e dedicação. Economizara para a inscrição
às vezes com prejuízo do jantar. Nunca ia esquecer o vexame da última corrida,
com cãibra, queda e atendimento médico na frente de todos. “É falta de
potássio”, disse alguém. “Falta de alongamento”, declarou outro especialista. E
o maldito do Zé Maria: “Foi o espelho que ele quebrou ontem na mudança de Dona
Mercedes”.
Desgraçado! Na verdade a culpa tinha sido dele, Zé Maria, que
ficou na frente com o espelho, enquanto Joca tentava carregar sozinho a
penteadeira. Mas nem por isso o cretino deixou de anunciar aos quatro ventos:
“O Joca quebrou o espelho!”. Teve ganas de lhe quebrar a cara, mas fingiu
indiferença. Não faria mais esses biscates. Era um atleta.
Depois, na corrida, o mesmo Zé Maria, além de saborear sua
derrota, ainda divulgava aquela infâmia no momento em que ele se contorcia de
dor.
Desta vez seria diferente. Evitou espelhos, escadas, gatos de
qualquer cor, e só saía de casa para os treinos. Todo cuidado era pouco. Não
que acreditasse nessas coisas, mas não queria dar argumento aos ignorantes.
Precisava ganhar. Precisava do dinheiro e de chamar a atenção de Mariana.
Precisava mudar de vida.
Como não se arriscou com biscates e favores remunerados nos
últimos dias, o dinheiro da inscrição veio do Seu Manuel e de algumas economias
em notas pequenas e moedas. A moça contou com má vontade e lhe entregou um
crachá. Os números enormes para pendurar no peito revelaram que sua inscrição
era a de número 666.
Sentiu um calafrio, pensou em protestar, exigir outro número,
mas a cara da moça não encorajou. “Não sou supersticioso”, fez questão de
declarar para que ela ouvisse. Mas às quatro da manhã ainda não tinha dormido.
E tinha que correr no dia seguinte.
Às sete horas, a largada. Joca está nervoso, sem dormir, as
pernas pesam muitos quilos e o crachá muitas toneladas. Os que saíram mais
atrás acabam de passar por ele. Pelo jeito vai ser mais um vexame. De que
adiantou tanto treino e dedicação. É agora que Mariana vai rir dele.
Ainda tem de ouvir piadas sobre o número no seu peito: “Esse
já ganhou!”, “Melhor não ganhar ou vai ficar devendo”. Joca tenta não pensar,
acelera o passo. Surpreende-se: vai deixando os retardatários pra trás, um a
um.
Ziguezagueia, costura, só assim consegue ultrapassar a
multidão que corre sem ritmo ou cadência. Mais à frente pista livre, passou a
turba de aventureiros. Vê os batedores, não deve estar longe do pelotão de
elite. O que está acontecendo? Continua acelerando, não sente dor nas pernas e
sua respiração é tranquila.
Os batedores olham com admiração quando ele alcança os
corredores da frente. Estes se entreolham querendo saber quem era aquele novato.
E não tem perdão. A poucos metros da chegada ele ultrapassa um desesperado
favorito e rompe a fita.
Aplausos, gritos, flashes e o coração aos pulos. Esta vitória
foi o que sempre desejou. Mas está nervoso, não consegue saborear a conquista.
No podium balbucia um obrigado e ensaia um sorriso que não sai. Evita quanto
pode os cumprimentos e se manda com o prêmio, a medalha, e sabe-se lá mais o
quê.
Nunca correu daquele jeito. Sente um calafrio ao imaginar que
podia não estar sozinho naquela corrida. Mas isso é bobagem. Mera coincidência
aquele número horroroso e a vitória inesperada. Não é homem de se assustar com
coincidências. Ganhou porque treinou e mereceu. Alguém tinha que ganhar e ele
ganhou. Simples assim. Respirou fundo e preparou-se para enfrentar o mundo, as
contas, as amizades e até as invejas.
O primeiro que bateu na porta foi seu Manuel, de quem
emprestara uns trocados para pagar a inscrição. Joca já se preparava para
saldar a dívida quando:
- Não precisa me pagar não. Fica de presente pelo teu esforço
e sucesso. Parabéns e continue assim.
Antes que pudesse protestar o outro foi embora. Nunca lhe
tinham perdoado dívidas. O que era isto agora? Estremeceu. Mas o português
voltou:
- Ó Joca, tu não estás querendo trabalhar. Tenho lá na
mercearia uma vaga, passa lá pra gente conversar.
Epa! Agora também um emprego. Joca está assustado. Onde foi o
seu azar? Em vinte e quatro horas ganhou corrida, dinheiro, perdão de dívida e
emprego. Agora só falta Mariana.
E é ela quem bate na porta, cheia de dengo, parabéns e
chamego. Os beijos espantam os maus pensamentos e Joca só desperta na manhã
seguinte com o oficial de justiça. Tem de ir a Cuiabá. Sua tia morreu e ele
precisa assumir terras, bois e cavalos. Mariana ainda comemora quando vê o
desespero na cara do Joca.
Ele corre até a praça e joga no chão a medalha e o dinheiro
do prêmio. “Vade retro”, grita para a assustada Mariana. “Vade retro”, e joga
uma pedra no carro do oficial de justiça. “Vade retro”, esbraveja para o
espantado Seu Manuel na porta do estabelecimento.
Depois esmurra a porta da igreja suplicando por exorcismo.
OBS: Este texto integra o Programa Crônica de um Ontem
e foi publicado originalmente em 17 de dezembro de 2012.


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