CAFÉ COM A DEUSA MÃE >> ALLYNE FIORENTINO





Quando eu era criança, adorava folhear os livros escolares ainda nas férias. Antes de termos de usá-los da “forma correta”, eu burlava as regras, pulava as páginas que deveriam ser lidas linearmente, capítulo a capítulo, para ter a enorme satisfação de prescrutar todo o conteúdo que eu aprenderia naquele anoAntes de inventarem a expressão sala de aula invertidaexistiram muitos nerds fazendo esse tipo de nerdice para aplainar o terreno para quem, um dia, lá na frente, daria um nome para isso. Mas o que eu mais gostava de ver eram as imagens dos livros. Naquela época em que não existia internet e as imagens das coisas deveriam ser impressas para que pudéssemos conhecê-las, era um verdadeiro deleite admirar as imagens dos livros de biologia, de artes, de geografia, de literatura.  

 

Ali, sem precisar de aula, já se aprendia muito sobre o mundo, apenas olhando a imagem e lendo as legendas. Nunca disfarcei minha sede de conhecimento, mesmo que isso soasse como soberba, mas a parte mais importante, talvez, do orgulho do conhecimento é saber lidar com o passado. E, não, eu não estou falando de aprender com os erros do passado, tão pouco sobre aquilo que deveríamos saber sobre fatos históricos... Não é nada disso! O passado te ensina que você não é especial. 

 

Essa é uma verdade que você não pode beber com Deus Pai, deve beber com serenidade na xícara com cicuta e talvez chamar de Café Com Pai Sócrates. O gosto é gourmet amargo-mortal, mas os melhores remédios têm gosto ruim, já dizia minha avó, já dizia a avó dela e a avó da avó...  vendo? É um verdadeiro esquema de pirâmide de conhecimento, que provavelmente remontaria às verdadeiras pirâmides, enquanto coisa material, pedra sobre pedra, gente que vivia e produzia conhecimento novo (?), inspirando-se sabe-se lá em que coisas anteriores. Construíram pirâmides de pedras para que nós construíssemos pirâmides metafóricas para charlatões contemporâneos. Um viva aos trabalhadores das pirâmides! 

 

Quando você se importa com algo aquilo se torna prioridade pra você e torna-se o centro da sua atenção! (PAI, Café com Deus). É verdade, nisso o Deus Pai do Café está corretíssimo, mas deus pai da editora colocou essa frase bobinha, rasa, bestinha, que qualquer ser humano médio poderia dizer sem esforço, sem nem pensar muito, em um livro, fez um marketing e agora ela vale algum dinheiro. Mais do que isso, ela torna o Deus Pai do Café especial, porque, ora bolas“renovar” tornou-se essencial. E nada mais velho e antigo do que se aproveitar dos desmemoriados, já dizia a sabedoria popular que o orifício dos desmemoriados é igual aos dos bêbados, não tem dono (POPULAR, Cultura)Tomando da caneca da frivolidade, li que “dentro das definições da palavra ‘renovar’, encontramos: tornar novo, melhorar, substituir por cosa melhor (PAI, Café com Deus)”. Quanta soberba, senhor Deus Pai do Café em pensar que poderíamos ser melhores que nossos antepassados. Na hora em que o avião está caindo, são os clássicos que você busca e pelos clássicos que você grita pedindo salvação. Ninguém é ateu de clássico nessa hora.  

 

Dizer de forma bem pior e sem talento aquilo que todo mundo já sabe ou que já foi dito anteriormente por talentosas figuras... isso é que chamam de inovação! Mas eu chamo de “especialização”, tornar especial algo que não é. Mas, como eu já disse, e outros tantos disseram antes de mim e eu, também, só estou repetindo, você não é especial. E não adianta chorar: crise existencial também é mais velho do que andar pra frente.  

 

O negócio é saber com quem tomar seu café. Isso remonta à velha sabedoria mineira, um cafezim não se nega a ninguém, mas se o convidado se senta na sua mesa e diz que acabou de inventar um negócio genial chamado café, você desconfia. Café Com Carisma e Desconfiança Mineira, sempre uma boa pedida.  

 

Outro dia eu vi um vídeo de uma mulher que estava abismada com um bicho estranho na praia, fez esse vídeo para mostrar pro mundo que aquele “alien” estava ali naquele momento e ela precisava de ajuda para entender o que era aquilo, porque afinal de contas não dá para filmar e procurar no Google ao mesmo tempo, no mesmo celular, não é mesmo?  

 

Ao contrário do Deus Pai do Café, eu não usarei de forma escusa o seu orifício de desmemoriado para dizer que uma das imagens daquele livro de quinta série mostrava uma Caravela do Mar, bicho fantástico, lindo, parece mesmo um alien. Nem vou dizer que todo mundo já teve um ou mais livros didáticos em que havia uma foto de uma Caravela do Mar e a legenda, explicando o que era aquilo. Não, o assunto memória e o motivo de as pessoas a perderem é deveras complicado para apenas um café. Mas, também, porque eu sou uma mineira, pessoa poética por natureza, e se fosse no meu Café, eu diria para ela que a palavra renovar vem do Latim (RE-, “outra vez”, + NOVARE, “tornar novo”), tornar novo de novo, talvez ela ali, diante daquele bicho meio “alien, teve o pasmo essencial que tem uma criança”, como diria Pessoa, ou a “saudade da pureza”, como diria Manoel de Barroseu sigo romantizando a ignorância de um povo que tem mais acesso ao conhecimento do que qualquer geração já teve, mas, pelo menos, eu não estou me aproveitando de ninguém.  


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Imagem: Freepik.

Comentários

Anônimo disse…
Pra quem gosta de boldo, essa crônica é uma xícara cheia.

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