A HERRANÇA >> Albir José Inácio da Silva
Bertinho voltou a Paracambi
depois de três dias no Rio, segundo ele, procurando trabalho. Estranhou os
olhares curiosos. Curiosos? Não, ele podia jurar que eram respeitosos. Isso
nunca aconteceu antes e tratou de aproveitar. Estufou o peito e foi retribuindo
os cumprimentos, que também sabia ser educado.
Não que fosse maltratado, afinal
aquela cidade o vira crescer. Mas era mantido a meia distância. Tinha fama de
não gostar do batente, pedia muito e pagava pouco. Rolava as dívidas para
quando arranjasse trabalho, mas nenhum lhe servia.
Essa sua ida para o Rio tinha
deixado os vizinhos revoltados. Conseguiu desfalcar, choramingando, a pensão de
uma pobre viúva: tinha que viajar para fechar um ótimo emprego na Barra da
Tijuca. Agora voltava reafirmando sua má sorte. O trabalho já era seu, mas na
última hora o patrão deu pra trás.
Mas, para sua surpresa, dessa vez
a desculpa não provocou a indignação de sempre.
- Não ligue não, Seu Bertim, Deus
sabe o que faz. – consolou a viúva desfalcada, com apoio dos outros vizinhos –
Quem sabe o senhor não precisa mais trabalhar?
Alguma coisa estava errada.
Ninguém o espinafrou, ainda era chamado de senhor e consolado. Os cumprimentos
continuaram. As pessoas apertavam sua mão, perguntavam pela saúde, pela mãe e
despediam-se com sorrisos e tapinhas. Não queria perguntar, mas provocou o
carroceiro:
- Tudo bem, seu Zé? Alguma
novidade?
- Eu que pergunto: o que o gringo
queria?
- Que gringo, seu Zé?
- Inda não sabe não? Desde ontem
anda por aí, debaixo de uma sombrinha, um branquelo suando muito e falando
enrolado que ninguém entende. Queria falar com você. Deve tá lá no hotel se
abanando.
Bertinho não achou o gringo no
hotel, mas viu, no Bar do Chico, copos levantados em sua homenagem. Entrou
aplaudido, enquanto Chico dava brilho numa mesa e segurava a cadeira pra ele.
- Moela pra tira gosto, Seu
Berto, que eu sei que o senhor gosta. E essa cerveja tá queimando de gelada!
Ora, ora, ora! Alguma coisa
estava acontecendo. Não que não se achasse merecedor daqueles mimos. Tinha sido
incompreendido durante a vida toda. Mas o que é que abriu os olhos dessa gente.
Chico esqueceu os outros
fregueses e ficou por ali, paparicando.
- Oh Chico, que mal lhe pergunte,
eu sei que você é uma pessoa gentil, mas por que está me tratando desse jeito?
- Ora, Seu Berto, está na Bíblia:
“Dai a cada um o que lhe é devido: a quem tributo, tributo; a quem temor,
temor; a quem honra, honra”! A gente tá sabendo que agora o senhor entrou na
nobreza, vai virar Conde, e pode comprar até a cidade se quiser.
Sempre bajulando, explicou que o
gringo veio lá do estrangeiro procurar o sobrinho e herdeiro de uma condessa de
nome esquisito, que morreu e deixou riqueza que não dá nem pra contar.
Bertinho não entendia, mas
entendia. A cabeça rodava. Faltou ar e ele fazia caretas pra respirar. Abriu a
boca mas a voz não saiu. Seu coração sacolejava. Sempre soube que tinha alguma
coisa de nobre. A prova era a inveja que sempre lhe dedicaram. Agora a justiça
divina se cumpria.
À frente de umas quatro pessoas,
entrou no bar um louro cansado e vermelho com uns papéis na mão. Foi direto à
mesa de Bertinho:
- A senhorr é a Senhorr Perreira?
- Sim, senhor. Alberto Pereira,
às suas ordens!
Já com a carteira de Bertinho na
mão, o alemão balançou a cabeça.
- Ah não! Não é a senhorr. Não
escreve igual esse. Procurro a senhorr Parreira, Humberto Parreira – e levantou
o papel.
Chico retirou o prato, a cerveja,
os copos. E rosnou:
- Não esquece que a senhorr já
tem uma pendurra, seu Perreira. Há seis meses!
OBS: Este texto integra o Projeto Crônica de Um Ontem e foi publicado originalmente em 13 de agosto de 2012.


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