ALTAS APOSTAS >> ANDRÉ FERRER

 — Você reformou a garagem.

— Sim.

— Passei lá na frente outro dia.

— Foi?

— Com as crianças — disse ela. — O mais novo precisava de médico.

— Entendo.

— Você está desempregado?

— Sim.

— É tão bom quando a gente trabalha.

IMAGEM: Gemini

Dessa vez, ele não respondeu. Apenas meneou a cabeça e conferiu a senha de atendimento. Uma caixa para despachar, o açougue, a casa lotérica. Tantos afazeres naquela manhã e, ainda por cima, precisava evitar aquela gente chata.

No balcão, outro funcionário dos Correios chegou e começou a trabalhar. Enquanto isso, a mulher prosseguiu com o interrogatório e José substituiu as respostas telegráficas pelos movimentos de cabeça.

O funcionário apertou o botão e a vez da vizinha, finalmente, chegou. José agradeceu a Deus, em silêncio, e pensou: A melhor parte da conversa é quando eu digo até logo, adeus, vai lá. O meu alívio atinge níveis estratosféricos.

A mulher voltou. Em vez de sair, parou ao lado de José. Tinha a persistência de um coelho no cio.

— A Dorcas da Pandorcas precisa de um atendente.

— Obrigado. Vou verificar.

— Mas é bom ir preparado. Olha! O meu sobrinho já trabalhou com ela... É uma cobra. Você precisa ...

— Senhor? — atalhou o moço do guichê.

— Oh! Minha vez. Com licença.

A mulher foi embora enquanto José preenchia os formulários do Sedex vagarosamente. De vez em quando, ele olhava por cima dos ombros como garantia.

No caminho do açougue, José caminhava e mantinha a defensiva. Um conhecido apontou no outro lado do quarteirão. José atravessou a rua. O sujeito era a versão masculina da mulher que estava nos Correios.

Com raras exceções, José considerava péssimos os habitantes do bairro. Falavam demais, gritavam muito e nunca sabiam a diferença entre mais e mas. Eram cafonas e ignorantes e José vivia evitando a vizinhança, gente que costumava abordá-lo em qualquer lugar ou momento.

José percebeu que o açougue estava próximo. Devagar, ele chegou à porta e espiou: limpo. Então, ele entrou e pensou: Ninguém por aqui! Às vezes, eu acredito que tenho sorte e é em momentos como este. Com certeza, os encontros indesejados me aborrecem, causam-me pânico. Por isso, eu aposto alto para que jamais aconteçam.

Por falar em apostas, ainda vou passar na casa lotérica. Meu Deus! O lugar é o inferno das conversas aleatórias. Um horror, prender-se a uma fila e ficar sujeito a qualquer cidadão que apareça.

O açoqueiro voltou a cabeça para ele, bateu a faca contra a o ferro de afiar e saltitou atrás do balcão.

— Meu nobre, o que deseja?

— Dois quilos de contrafilé.

Na lotérica, duas pessoas apenas, dois completos desconhecidos. José espiou, entrou e foi preencher algumas cartelas. Depois, ele entrou na fila e, enquanto esperava, notou um cartaz que estava pregado num dos vidros blindados. Era a propaganda de um empreendimento imobiliádio.

Ah, o Paradise!, pensou. Tenho certeza de que será um lugar limpo... Quem dera! Os futuros moradores do Paradise são todos civilizados. A elegância e o bom gosto serão unanimidade por lá... Aliás, eu conheço duas pessoas que terão esse privilégio e o Pereirinha até já se mudou. Apostou alto e foi para bem longe desta escumalha.

Jogo feito, ele parou na porta da casa lotérica e certificou-se de que estivesse limpo. José começou a andar. Agora, era só tomar cuidado e evitar a deselegância coletiva.

Uma vez mais, precisou atravessar a rua. O segredo da coisa estava em reconhecer o incômodo à distância. Nunca deixar que se aproximasse.

Perto da subida para o beco, ele avistou Pereirinha, que já pisava nos primeiros degraus da escadaria. José sorriu e apertou os passos. O caminho, que ia dar atrás da antiga torrefação, era íngreme. José chegou esbaforido ao beco e viu Pereirinha na frente da sua antiga casa, que seria alugada.

José caminhou naquela direção e acenou quando Pereirinha levantou os olhos. O homem do Paradise moveu um pouco a cabeça e entrou.

— Que sorte, a do Pereirinha — José murmurou.

Comentários

Postagens mais visitadas