SEU PEDRO >> JANDER MINESSO
Meu avô materno foi meu primeiro amigo.
Quando moleque, eu adorava andar de bicicleta no quintal de casa. E mal começava a pedalar, já ouvia o “chalac-chaluc” dos chinelos do vovô se arrastando ao meu encontro. Enquanto eu voava pelo quintal, travando disputas imaginárias que deixariam o Senna com inveja, vô Pedro ficava encostado no portãozinho da esquina, fumando e torcendo para que eu ganhasse a corrida.
Depois que o cansaço me vencia, largava a bicicleta no chão e passava a admirar os personagens da Vila Paula junto dele. Pedrão criou nomes para o bairro todo, começando pela Cata Bia, uma senhorinha toda enrugada que era a matriarca e chefe de Estado de um cortiço ao lado de casa. O vô a apelidou assim porque ela vivia catando bitucas de cigarro no chão, na esperança de que sobrasse algum toco para ela fumar. E pelo menos no vocabulário pedrístico, bia era sinônimo de bituca.
Tinha também o Cudiguim, moço alto e magro que talvez lembrasse um pouco o Marcelo de Nóbrega. Não me recordo muito bem do rapaz, mas é óbvio que um apelido que começava com “cu” tinha um lugar especial na cabeça de uma criança. Lembro ainda de um senhor com bochechas de buldogue que sempre parava na esquina para cinco minutos de prosa com o vô; da tia do Yakult, que passava às quintas-feiras e ficava feliz da vida quando Seu Pedro levava o dobro do que pretendia pelo simples fato de que estava sem troco no bolso; e da Araponga, vizinha da frente que estava sempre sorrindo e conversava com a gente aos berros.
Além de amigo, Pedroca também servia como linha de defesa contra o arquivilão da minha infância: meu irmão do meio. Por sorte, vovô nunca questionava minha inocência. Foi assim que fiz muita coisa errada e escapei impune: tudo era culpa do outro neto. Se eu chegasse chorando, então, o velho já soltava o grito clássico:
– Crébe, Dio che ti mandi un sacco di merda!
Pois é: Cleber virava Crébe. Ele tinha dificuldade em falar o nome dos netos. O mais velho era o Érmesso. Quanto a mim, não faltavam opções: Sândre, Muleque, Piruliti, Nenê… cada hora era uma coisa, menos o meu nome. Fico pensando se, em algum momento, ele repreendeu a filha por dar nomes tão estranhos aos netos. Mas ele quase batizou minha mãe como Geni, então acho que ninguém tinha moral para criticar ninguém nessa história.
Claro que Pedrão era tudo, menos santo. Um dos seus traços mais notórios era uma paixão avassaladora pelo álcool. Tanto que meu pai, cansado de resgatar o sogro pelos botecos, combinou um esquema com ele: duas doses diárias de cachaça, uma antes do almoço, outra antes do jantar. A exceção acontecia apenas aos sábados, quando Seu Pedro ia cortar cabelo e barba. Por acaso, bem no meio do caminho entre nossa casa e o barbeiro existia um bar. Assim, ele aproveitava para tomar um trago na ida e outro na volta. E para se eximir de qualquer culpa, ele sempre pegava algumas caixinhas daquele Chiclets na volta, “pros neto”. Nunca esqueceu dos docinhos. Nem mesmo naquele sábado fatídico, quando a segunda dose de pinga se misturou ao Higroton que ele tomava há anos para controlar a pressão.
Talvez fosse a combinação bombástica de álcool e remédios; ou alguma outra coisa que não tivesse caído bem. Num misto de tontura com enjôo, Seu Pedro caiu. Depois, botou para fora o que tinha no estômago e depois acabou aspirando o próprio vômito. Eu estava andando de bicicleta no quintal quando uma vizinha apareceu esbaforida no portão para nos avisar. Meu irmão mais velho pulou o muro de casa sem usar as mãos e desceu a rua correndo. Um pouco antes do almoço, ele voltou para casa chorando, com três caixinhas de Chiclets nas mãos.
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Imagem: Miriam Müller por Pixabay
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