OS SEGREDOS QUE A MATA ESCONDE - parte 2 >> Zoraya Cesar

O monstro que nos gerara e que a lei nos mandava chamar de pai estava velho e acabado – a vida de fugitivo é esgotante – mas um leão sem dentes ainda é um leão.

E ele estava mais agressivo que antes. Ainda bem que meu irmão Frederico estava escondido na casa da madrinha, em outro povoado. Vi meu pai dando uns safanões na minha mãe, puxando seus cabelos até quase o escalpelo, querendo saber onde meu irmão estava. Quando eu gritei para!, ele a jogou contra a mesa e saiu rosnando.

Eu tremia. Tremia de medo, de raiva, de tudo. Minha mãe me proibiu de interferir ou enfrentá-lo. Afinal eu era apenas uma menina, mal entrara na adolescência.

Ele ainda não me agredira. Me olhava com ódio, ameaçava esmagar minha cabeça, mas não se aproximava, como se sentisse medo. Não sei explicar direito, mas não era a mim que ele via, mas algo ao meu redor. Como se alguma coisa estivesse comigo. E eu sei bem do que se tratava. Quem vive no mato sabe que há mais coisas à nossa volta do que os olhos podem ver.  

Minha mãe e eu sentíamos que eu estar por perto o incomodava ao ponto do quase insuportável. Víamos a hora em que ele perderia o medo e as estribeiras.

Mas não haveria testemunhas, oh, não! Ou ele teria que fugir de novo, já envelhecido pelo álcool e pelos anos ao relento. Ia perder a cama quente, comida na mesa e uma mulher para ele abusar? Esperaria o momento certo. Sempre poderia haver um ‘acidente’ e eu desapareceria, que nem Seu Robledo. Eu bem percebi que ele batia trilha atrás de mim, sondando a hora em que poderia me pegar desprevenida. Afinal, eu era só uma menina.

Uma menina que tinha parte do sangue ruim dele e que fora criada pelo Caboclo Sargento Robledo. Meu pai não era páreo pra mim. Não mesmo.

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Eu tentava não deixar a roça estragar de vez nem desleixar nossas vacas, mas sem o Seu Robledo e Frederico para ajudar ficou difícil. Minha mãe chorava escondido, lamentando por meus estudos, ela e Seu Robledo queriam tanto que eu me formasse. Mas eu estava tranquila. Conversei com a professora e combinamos que depois eu teria aulas de reforço, para não perder o ano.

Depois de quê?

Depois de achar o corpo do meu padrasto.

Parece que muito tempo se passou desde que ele sumiu e meu pai voltou pra casa, né? Mas foram apenas alguns dias! O sofrimento faz o tempo se arrastar.

Divago enquanto adentro a mata, mais uma vez, rastreando o corpo.

Como disse, aldeões experientes concluíram que meu padrasto fora comido por uma onça (haha, como se alguma pintada fosse mais esperta que ele). No entanto, nenhum dos aldeões era tão bom rastreador quanto Seu Robledo – ou quanto eu. Por isso não acharam o corpo.

Mas eu achei.

Agradeci a todas as deidades da mata por não tê-lo encontrado já em decomposição avançada. Acho que eu não suportaria. O terreno era seco e a terra conservou o corpo por aqueles poucos dias, desde que ele morrera. Com um tiro nas costas.

Só assim mesmo, de emboscada e na covardia, para matar meu padrasto. Mas como um caboclo experiente como ele fora tocaiado assim?

Nós que vivemos na natureza temos lampejos de intuição - faz parte de nossa sobrevivência. Entendi o que acontecera. Ele ou soubera da proximidade do meu pai ou pressentira sua chegada. E resolveu servir de isca, afastando-o da nossa casa e acabar com ele longe de nós. Só que algo dera errado. Do destino ninguém escapa, ouvi sua voz me dizer, tão nítido como se estivesse vivo.

Um macaco-prego gritou nas árvores, alertando os animais que um predador se aproximava. Deixei o corpo escondido do jeito que encontrara e saí rapidamente. Ali não era hora nem lugar para ficar ensimesmada de bobeira.

Vocês devem estar estranhando. Só isso? Descobri o corpo e fui embora, sem derramar uma lágrima? Sim. Eu estava seca por dentro e mais tensa que uma corda antes de soltar a flecha. Ademais, eu não tinha tempo para lágrimas. Era hora de começar a segunda parte do ‘depois’.  

Do destino ninguém escapa. Do destino ninguém escapa. Muito menos meu pai, que não ia escapar do dele.

Meu coração estava frio como o fundo do lago, mas leve. Agora que descobrira o que realmente acontecera, eu sabia o que tinha de fazer.

Eu só precisava de alguns dias para me preparar e esperar a lua crescer no céu.

E lua cheia surgiu, espledorosa e nua.

Enfim, o momento tão esperado, planejado, acarinhado.

Contei para minha mãe, de forma que meu pai pudesse ouvir, que eu achara pistas de onde poderia encontrar o corpo do desaparecido. Quando meu pai se aproximou para ouvir melhor, eu baixei os olhos e continuei comendo em silêncio.

A reação foi ainda melhor do que eu esperava. Pegou a espingarda, exigiu que eu entregasse minha faca – ou ele arrancaria os dentes de minha mãe a socos –, trancou-nos no quarto e saiu pela noite. Agora estávamos verdadeiramente indefesas. Ou não.

O que ele não contava é que Seu Robledo me ensinara a destravar todas as fechaduras da casa. Agora sei por que ele fez isso.

No meio da noite de lua cheia meu pai saiu, desta vez não para encher a cara, mas para ver se o corpo estava ainda bem escondido.

No meio da noite de lua cheia eu também saí, depois de passar repelente no meu corpo todo, carregando a faca e a arma que Seu Robledo me ensinara a deixar muito bem escondidos em todos os cômodos. E com outra coisa, que vim preparando naqueles últimos dias. Minha mãe me abençoou e me deixou ir. Do destino ninguém escapa, ela também sabia.

A noite no mato é bem diferente do que vemos nos filmes. É fria, úmida, lúgubre e mortal. Tem lugares em que a luz da lua não chega. Qualquer movimento causa sobressalto, qualquer sombra é monstruosa. Qualquer passo em falso e você já era. Sua última sensação pode ser o hálito quente e os dentes perfurantes de uma onça, o abraço apertado de uma jiboia, o mergulho final nos dentes de um jacaré. E eu era só uma menina assustada.

Sem falar das formigas carnívoras. Sem falar das formigas carnívoras.

Mas Caboclo Robledo tinha me ensinado bem.

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Dizem que o criminoso sempre volta ao local do crime e o escroto do meu pai não fugiu à regra.

Confesso que tremia um pouco. Se algo desse errado, eu morreria ali, naquela mata assustadora, e não teria ninguém para me fazer justiça. Pensei em minha mãe e irmão, tão amados, tão maltratados. E em meu padrasto, que, para tentar nos defender, acabara morrendo de maneira covarde e abjeta. “Você é especial, ainda vai nos dar muito orgulho”; “só é feliz aquele que sabe o que é certo e faz o que tem de fazer”. Eu ouvia sua voz ali, do meu lado, tão real quanto a luz da lua e as sombras que dançavam no chão.

Parei de tremer de medo e de temer a morte. Afinal, do destino ninguém escapa.

Silenciosa como uma serpente na noite, levei a zarabatana à boca e soprei com todas as minhas forças. O dardo saiu, sibilante e fatal, atingindo meu pai nas costas, exatamente como ele atingira Seu Robledo. Ele gemeu e caiu, pesado como seus pecados.

E do chão não levantou. Cheguei perto, ajoelhei.  Sua boca começava a babar levemente.

Curare. Ô coisa boa.

- Seu erro não foi nem ter voltado. Foi ter matado o único pai que Frederico e eu conhecemos. O único homem que minha mãe amou.

Seus olhos chisparam ódio por um momento, depois, medo. Nunca pensei que pudesse gostar tanto daquele momento.

Comecei a aspergir nele um líquido com cheiro de carne podre.

- Aqui, as formigas carnívoras gostam desse cheiro, como você... não sabe. Não entende nada de nada. Só de beber e espancar criança e mulher. E de matar pelas costas. Ah, sim, fiz a mesma coisa porque você é um covarde filho da puta.

- A dose foi suficiente para dar tempo de as formigas te comerem. Você tá entendendo? Antes sufocar, você vai sentir a dor e o horror de ser comido vivo. O inferno já é aqui, ‘pai’.

Ele grunhia e babava, os olhos arregalados. Apliquei mais uma dose de repelente em mim e me afastei o bastante para não estar no caminho das formigas.

Chegaram, centenas delas, tão organizadinhas, conversando entre si, avaliando se aquela carne era comestível. Era.

Não vou descrever a cena em detalhes, para vocês não perderem o sono.

As mandíbulas dessas formigas são afiadas e cortantes, tiram nacos profundos, pele, tendões, músculos, tudo aos pouquinhos, ordeiramente. Depois que começam, não há salvação. Elas também gostam das partes moles. Entram pelos orifícios - olhos, boca, nariz, chegam até o cérebro. Comem a língua. Comem as vísceras O cretino gritaria se o efeito do curare deixasse. Só gemia.  Não deu tempo para o curare matar o cretino sufocado, elas foram mais rápidas, como piranhas. Então, ele morreria de um jeito ou de outro. Que bom que foi de outro.  

Porque do destino ninguém escapa, né Caboclo Robledo?

Ao amanhecer tudo estava terminado. Meu corpo estava dormente e rígido pela imobilidade prolongada e pelo frio. Matei meu pai e não derramei uma lágrima.  

A mata esconde segredos. 

Disse à minha mãe que meu pai jamais voltaria. Ninguém questionou o sumiço do traste. Mas notei que os aldeões passaram a me tratar com respeito, como adulta. Alguns paravam pra me cumprimentar.

Alguns dias depois, levei minha mãe e meu irmão até o corpo de Seu Robledo. Como disse, a mata tem seus segredos. Não havia sinal da carcaça de meu pai. E eu sabia que poderia não me preocupar com isso.

Frederico agiu como homem. Depois de fazer suas preces, começou a preparar uma cova decente para nosso padrasto, as lágrimas caindo silenciosas e solenes. Minha mãe, ao lado do corpo, falava coisas que jamais saberemos o que era, mas, ao mesmo tempo, sabíamos. E eu? Eu chorei histérica e copiosamente. Eu era só uma menina.

Minha mãe deu o chapéu e o revólver de Seu Robledo para Frederico, e, a mim, o facão. Para ela, pegou o anel de sargento, o qual levou guardado junto ao peito até o final da vida.  

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Os anos passaram.

Frederico entrou no exército e virou tão bom mateiro como Seu Robledo fora um dia. Não tem mais nada de abobado. Tá namorando e vai fazer prova pra sargento.

Minha mãe não casou de novo. Toda noite senta no alpendre, exatamente como fazia com Seu Robledo. E Frederico e eu sentamos perto, em silêncio, exatamente como quando crianças.

Eu me formei em veterinária. Meu marido toma conta da fazenda. É quieto, forte, correto. Um companheiro como poucos. Tivemos um filho. E, quando ele fez quatro anos, parei de sonhar com Seu Robledo.

Fiquei arrasada, chorei muito. Mas meu marido, sábio como todo homem do mato, me abraçou e disse para eu não me preocupar. A vida é evolução e transformação, disse. Seu Robledo estaria por perto de alguma outra forma. Amo muito o meu marido.

Via meu filho brincar, pensando que teria sido tão bom se Sargento Robledo tivesse conhecido o neto!

Foi numa noite de lua cheia que meu filho chegou pra nós, todo alegrinho, dizendo que agora tinha um amigo. Como é ele, meu filho? Do jeito dele ainda meio tatibitate ele descreveu o amiguinho.

Sim, vocês acertaram. Era Seu Robledo em todos os detalhes. Vestido de branco. Pés descalços. Desarmado. Como dissera meu marido, a vida evolui. Meu padrasto era agora somente o Caboclo Robledo. E continuava a velar por nós.

A mata tem seus segredos, e a morte é apenas mais um deles.

Adorei às almas.

OS SEGREDOS QUE A MATA ESCONDE - 1A PARTE






 




Comentários

branco disse…
Se tudo é evolução , seu conto faz parte. Diferente dos demais na ambientação, no entanto, mantendo a essência vital, ou seria mortal?. Muito apreciado e como um pequeno lembrete: Toda evolução sugere um ponto de partida e o seu ponto, a sua base, sempre foram sólidas.
Marcio disse…
Por que as formigas dispensaram o Seu Robledo?
O molho era um fator tão decisivo assim?
Ou será que elas, como boas formigas, preferiam algo doce?
Será que elas só comem brigadeiros, dispensando postos mais baixos, como os sargentos?

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