SUCO DE UVA COM MANJERICÃO E MEL >> Carla Dias


Tomou banho e, graças ao deus no qual acreditava no momento — só para esclarecer, era o Sr. Geraldo, ele morava no mesmo quintal e costumava lhe emprestar os gibis mais irados —, conseguiu fazer algo que achava impossível acontecer.

Nasceu miúdo, vivia doente, passou pelo inferno por meses, e teve de lidar com a viagem programada pelos pais, para visitar a filha. Depois do casamento, sua irmã se mudou para Ilha Comprida — e ele acreditava que a tosse comprida que teve morasse lá, não queria ir, berrou até a voz acabar, os pulmões reclamarem. A intervenção foi necessária. O vizinho entrou na sala, olhou direto nos olhos dele, que sentiu um bocado de vergonha ao se mostrar tão medroso ao deus dos gibis. O homem se sentou no sofá, curvou-se até ficar bem perto, e então soltou, com voz arrastada e rouca: 

— Já experimentou suco de uva com manjericão e mel?

— Não, senhor... 

Passou noites em claro, namorando estrelas e bebendo aquele suco, o coração acelerando à toa. E se questionava, o tempo todo, entre reflexões e corridas ao banheiro para fazer xixi: e se não der certo? E se fosse pequeno demais para tamanha grandeza? Uma ilha?

A viagem só aconteceu depois de o vizinho convencê-lo de que estaria protegido, mas apenas se levasse uma garrafa daquela mistura mágica. E ele foi tão bom ao fazê-lo, que o menino não só se encheu de coragem, como se atreveu a gostar da ideia. Uma semana depois, carregando ele mesmo, não uma, mas três garrafas do líquido milagroso, conheceu a ilha onde morava sua tosse. Mas ela fugiu, e o deixou saudável para abraçar a irmã e fazer o que nem sabia existir, pensava ser história inventada: encarar o sem-fim das águas.

Então, a tosse voltou, e veio cobrando caro a despachada sofrida. Ele rezou, desta vez para o deus da mãe, na esperança de aparecer outra bebida de desfazer doença, mas não teve jeito. Ficou dias de cama, a tosse mais comprida do que de costume. 

Foi assim, sem conseguir pensar de tanta febre, de respirar ser quase impossível, que se lembrou de uma pergunta feita pelo Sr. Geraldo, deixada por ele sem resposta:

— O que você acha do mundo?

Achava nada. Já tinha idade para saber que o mundo dele era pequeno, mas não maturidade para entender o motivo. 

Pensou em seu amigo, Otero, que continuava sua saga. Era alvo dos meninos e das meninas “do pátio”, que passavam o intervalo todo agoniando os colegas que achavam fracos. Mas ele era inteligente, os professores comentavam, então, aguentou firme e viveu ofensas e safanões. Otero sabia sobreviver, e ele torcia por isso. Também torcia em um dia aprender a ser feito ele.

Depois, ficou doente de outra coisa, da qual não entendia explicação, e que o mantinha em silêncio. Deitado na cama, o corpo mirrado, sem vontade de suco — nem se estivesse adoçado com mel extra —, achou, assim, de descobrir, o que achava do mundo. Passou dias sem dizer uma palavra, pensando nessa descoberta, até chamar pelo deus dos gibis.

O vizinho entrou no quarto, olhar aguado, caminhar cambaleante, sorriso mirrado. Sentou-se na cama, segurou as mãos miúdas dele entre as suas, esperando que ele finalmente entregasse sua resposta.

— Eu descobri, Sr. Geraldo... eu acho que o mundo é um pátio de escola bagunçado por risadas e de água de mar lambendo os pés da gente.

Na verdade, a ideia de necessidade de entregar resposta foi somente um jeito de trazer o contador de histórias para perto. Queria escutar mais uma daquelas que ele tirava dos gibis e misturava com as dos conhecidos do bairro. O menino escutou — foi como se misturasse uva com manjericão e sentisse acentuado gosto de mel, até sentir não ser mais uma opção.

Sr. Geraldo foi conhecer a Ilha Comprida; pediu ao mar que lambesse seus pés. Nunca mais tomou suco.

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