XUXA SCOTT >> ALLYNE FIORENTINO
Desde o dia em
que inventaram os fones de ouvido Bluetooth com supressão de ruído, não ouço
mais nada na rua. Se estiverem brigando, se alguém me pede esmola com uma
história triste, se querem me vender um incrível imóvel que promete abrigar a
sua vida em 20m2 por mísero meio milhão ao lado do metrô, eu não
ouço; cantadas, muito menos; produtos duvidosos que “lá fora está um preço
absurdo”, também não. Vocês não sabem a paz que é isso.
Já cheguei ao
nível de ver uma pessoa falando comigo, mexendo a boca enquanto eu olhava pro
seu rosto, fazendo o mínimo possível pra entender alguma coisa e eu apenas
acenei a cabeça concordando, soltei um: “É claro!”, me virei e continuei o que
estava fazendo. Nem sei com o que concordei, mas tem dia que você só quer ignorar
o mundo todo. E ambas seguimos felizes.
Às vezes o que você precisa é só de alguém que concorde com você. Pode nem ser
verdade, mas é suficientemente poderoso. Vocês deveriam experimentar o poder e
a liberdade de um “é claro!”.
Mas tem gente
mais decidida, que o seu gesticular já vem carregado de interrogações não verbais e mesmo de
fone você entende que vai precisar conversar. Foi assim que tirei meu fone e
perguntei “o quê?”. “Que ônibus sobe a Avenida Salvador?”, perguntou um senhor
de talvez uns 50 anos, magro, vestido com calça e casaco. “Tem vários. O próximo que vier eu te aviso”.
E fiz menção de colocar novamente meu fone, mas rapidamente ele disse, feliz e
açucarado, “meu nome é Xuxa Scott, muito prazer”. Eu desisti dos fones porque finalmente
me interessei na conversa e repeti: “Xuxa?”. “Isso mesmo”. Dei um sorriso leve
diante dessa informação e me apresentei também. Notei que Xuxa era cega do olho
esquerdo (teria ele levado a sério as recomendações bíblicas ou seria de
nascença? Nunca saberei.).
Com seu
gesticular de cortina ao vento, continuou: “eu vim do abrigo lá da rua felicianos, vou
começar em uma padaria hoje como atendente, é meu primeiro dia”. Eu o
parabenizei, com verdadeira alegria e quentinho no coração, dizendo mais como
benção do que como constatação: “vai dar tudo certo!”. E ele continuou: “Agora
eu quero trocar pro abrigo trans que tem ali em cima, porque é mais próximo da
padaria. Eu também não sou mais novinha pra fica na rua”. E eis que na falta de
uma resposta mais rápida, só disse: “É claro”.
Mas ao mesmo
tempo minha cabeça estava lá longe, com dupla curiosidade e espanto: existe um
abrigo exclusivo para trans? Por que caminhos teria andando Xuxa quando era
“novinha”? Não é mais novinha pra ficar na rua... E haveria uma idade aceitável
para um ser humano viver na rua, Xuxa? Xuxa... mas que nome! Xuxa Scott. E
podendo escolher uma identidade nova e um nome novo, alguém escolheria Xuxa?
Por que nunca um nome comum? De uma mulher comum. Sei lá, Ana Silva. E mais
ainda, tendo a oportunidade de poder ser qualquer coisa no mundo que,
supostamente, lhe deixou ser o que bem entendesse por meio do nome, escolher
ser Xuxa?
Que desperdício
de desejo! Reviver a decadência de uma época, uma simbologia que mescla abuso
de todos os tipos misturados com infância, dinheiro e as roupas que pareciam de
drag queen usadas para um programa infantil. Que escolha esquisita! Lembro-me
de uma professora que contava que tivera uma aluna chamada Medeia e completava
sempre: “Quanto peso para se carregar em um nome!”. Muito peso mesmo. Aquela mãe
ali, com três crianças vivendo embaixo de um viaduto... certamente seu nome
deve ser Maria. Nada de fantasias, nem de escolhas. Maria.
“Olha, esse
ônibus que está vindo vai até onde você quer ir”. Ele agradeceu e entrou no
ônibus, passou pela catraca e parou no meio do corredor, e não ficou de lado,
virou para frente, segurou, com uma mão de cada lado nos bancos e ficou ali no
meio do veículo, com seus resquícios de esmalte cor de rosa na unha, como quem
espera para entrar em um show. E foi-se embora na sua nave, a Xuxa.
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Imagem gerada por IA.
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