O silêncio das palavras >>> Nádia Coldebella

A solitude é o fermento do escritor, mas ele fenece quando as palavras silenciam. Ele morre. Por um segundo, hoje, por dias ou para sempre. Morre de um absurdo de coisas não ditas, coisas que fazem pressão, prontas para empurrar estrondosamente a rolha que segura fechado o gargalo da consciência. Mas como os não-ditos são sentidos sem o sentido, o escritor perece e o humano, morto vivo nele, permanece em angústia, inação, inanição, torpor, letargia.

Bem, as minhas palavras calaram-se, ocultaram-se, emudeceram, desistiram. Acho que assustadas com todo o ruído, rumor, murmúrio, sussurro, rumerejo, bulício e cicio. Ou talvez com tanto tumulto, balbúrdia, rebuliço, vozearia, conturbação, escarcéu, bulha e discussão.

É que tem muito barulho aqui. É tudo ao mesmo tempo. Dentro e fora de mim. Muita gente, muitas vozes, nenhuma solidão, nenhuma solitude, nenhuma palavra.

As que aqui aparecem não são palavras, são pseudopalavras. Porque palavras, antes de existirem no papel, falam com a gente numa linguagem que só a gente entende e revelam-se, e contam uma história, fazem uma arte. Estas aqui já existem e eu apenas as relato. Por isso das frases curtas. Da falta de cor. Da prolixidade. E de um esforço consciente e bruto (uso uma marreta) para fazer as peças se encaixarem.

Certo. O que vem agora?
O vazio.
O barulho.
O silêncio das palavras.
O que vem depois?

Uma pequena experiência de literatura com pseudopalavras ou a tentativa de roubar ideias que já existem e fazer de conta que já são minhas.
(Arrisco a não escutar as pseudopalavras também, porque se agora elas colaboram é porque querem. Mas elas podem calar-se se eu, desonestamente, tentar dizer que são minhas. Ou talvez minhas palavras fiquem com medo, inveja ou ciúmes e resolvam dar o ar da graça.)

As pseudopalavras calaram-se.
O silêncio das pseudopalavras.
E das palavras.
(Se houvesse algum grilo na circunvizinhança, eu ouviria cri-cri-cri).

Esforço-me para escutar. Moro numa cidade pequena, ainda tenho o prazer de poder escutar alguma coisa. Vento. Pingos de chuva. Tem um pássaro do lado de fora da minha janela que pia, gorjeia, trina e pia de novo, várias e várias vezes. Gostaria muito de me aproximar dele, olhar em seus olhinhos, acariciar suas penas e sufocá-lo até a morte. Ele faz muito barulho. Não me deixa só.

Meus pensamentos são pássaros que voam alto e afugentam minhas palavras

Meus pensamentos também são pássaros, penso eu, que voam alto e não me permitem identificá-los. Observo-os, negros contra o céu infinitamente azul deste inverno-verão, mas logo minha vista é ofuscada pela claridade (ela não deveria fazer ver-me ao invés de cegar-me?). Meus pássaros-pensamento fazem muita algazarra, afugentam minhas palavras. Aves toscas, rebeldes, desordenadas. Até que são belas vistas daqui, mas fazem muita algazarra. Afugentam minhas palavras.

Escuto mais um pouco. Quem sabe alguma palavra se compadeça da minha tentativa heroica de entrar em estado alfa e fazer contato com esse mundo misterioso dos sentidos que só se revelam quando querem? Não, nada. 

Palavras são monstrinhos egocêntricos e sem compaixão. Ambicionam meu silêncio e minha solidão para revelarem-se. Me querem inteira, toda pra elas. Mas tenho plantas, gato, cachorro, marido, filhas, casa, trabalho, amigos, pais, ouvidos, olhos, sonhos, desejo, angústia, dor, medo. Tenho confusão. Não tenho solitude, não tenho solidão.

Tento calar-me. Isolar-me no quarto. Preciso desligar a televisão, o celular e o telefone. Ficar longe das crianças, usar fone de ouvido, não sentir, não pensar, não respirar. Quero o nirvana, mas tem muito barulho. Meus pensamentos fazem algazarra.

Desisto. Hoje feneço. 


Comentários

Jander Minesso disse…
Acho que todo mundo que gosta de escrever e tem uma certa habilidade de mexer com as palavras vai compartilhar dessa agonia que você pintou muito bem, Nádia. E gostei de ver um lado diferente das Adalgisas e dos Contos Anti-Contas. Versatilidade que fala, né?
Soraya Jordão disse…
Achei interessante o alinhavar da dor de existir com a dor de escrever.
Zoraya Cesar disse…
Mais um texto sombrio da Countess, que não deixa por menos e sonha em matar o pássaro canoro que encanta, mas também atrapalha. Quem disse q o belo é sempre bem-vindo? às vezes, tudo o que a gente quer é isso: silêncio dentro e fora, por favor!
sergio geia disse…
Angustiante seu texto hoje. Não desista. Não feneça.
Ana Raja disse…
Nádia,texto lindo! Essa agonia em escrever mora com a gente, e acredito ser a chama para escritas tão boas como essa que vc escreveu.
Anônimo disse…
Escrever é disfarçar vários fracassos sob muitas camadas de reescrita. Nem sempre a gente consegue. André Ferrer aqui.

Postagens mais visitadas