O FIO DO COMEÇO >> Carla Dias


Procurei nos livros científicos e religiosos. Também me aprofundei nas entrelinhas da imaginação. Escutei conversas entre ébrios, solitários e radicais. Participei de debates, sessões de silêncio total, celebrações e funerais.

Fui a expectadora que qualquer espetáculo merece: aberta, presente, pronta para compreender.

Não compreendi.

Talvez fosse preciso voltar ao começo, mas então, minha mente – abarrotada de informações das quais não consigo identificar importância – me trai.

Onde deixei o começo?

Caminhei por horas, passei dias sem dizer palavra, alimentei-me de orações, até me render às provocações que a necessidade de milagres impunha, todas curvadas ao merecimento que não reconhecia em mim.

Ou, talvez, eu apenas não quisesse a plenitude de quem encontrou a resposta.

Então, os desejos, dos mais nobres aos criativamente mundanos; propagadores de expectativas que não se importavam em ultrapassar o limite do improvável.

Pratiquei fugas nas suas diversas e nem sempre atraentes formas. Acabei em salas cheias de pessoas com as quais não conseguia me conectar; em planejamentos dos quais não reconhecia benefício. Encarei tarefas para as quais não tinha habilidade, nem queria ter.

E tudo latejou na sensação de não identificar serventia.

Onde começa o medo, termina o apego, sobrevive o contentamento?

Alegria é ornamento. Esbarra nos lábios da gente e depois nos escapa, ocupando-nos com o que sobra de quem éramos antes de ela nos atingir.

Talvez fosse melhor falar sobre a rotina, na qual moram tantas alternativas menos caóticas. Fazer algo pelo mundo, colocar-me em pausa nas mãos do previsto.

Procurei na internet, nas leis – termodinâmicas e do movimento planetário –, nas dobras das roupas empilhadas sobre a cama, nos chás calmantes. 

Busquei em tantos lugares, ideais, rupturas, mas não encontrei o segredo do universo, a fórmula para a paz mundial, o caminho até mim mesma.

O começo, no final, fica no meio de tudo.


Imagem © Ahmadreza Heidaripoor, por Pixabay

carladias.com.br

Comentários

Jander Minesso disse…
E perdidos vamos em frente. Me lembrou uma história do Sandman, em que o Sonho vai visitar os jardins do irmão mais velho, o Destino. Quando eles olham pra frente, tem um labirintão. Mas quando olham pra trás, só tem um caminho. Não é o mesmo tema da sua baita crônica, mas me lembrou um pouco. Sei lá o motivo. Mas enfim: mais um texto lindo de viver.
Milton Rezende disse…
texto muito bom e bonito da Carla Dias. parabéns!
Carla Dias disse…
Minesso, Sonho visitando os jardins do Destino, eu adoro Sandman. Mesmo sem saber o motivo, fico feliz que meu texto tenha lhe trazido essa lembrança.

Milton, muito obrigada!
Nadia Coldebella disse…
E vamos recomeçando, na tentativa de chegar em algum lugar...
sergio geia disse…
Vida cheia de incompreensões... Belíssimo e profundo texto, Carla, com as camadas de sempre.
Leio suas crônicas desde 2016, estava há um tempo sem vir aqui e me deixou muito feliz de ver logo um texto seu assim que abri o site. Você é incrível Carla Dias,por favor não pare jamais.
Carla Dias disse…
Pois é, Nádia... Seguimos recomeçando.

Obrigada, Sergio!

Jacqueline, muito obrigada por voltar e pelo carinho. Abraços!

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