MÚSICA PARA BALANÇAR O ESQUELETO >> JANDER MINESSO


Existem coisas que faço muito bem. Dançar não é uma delas. Sempre me achei alto demais, magro demais e desengonçado demais para mostrar em plena luz do dia todo o suíngue que deus não me deu. Por sorte, ainda jovem encontrei o lugar perfeito para desjeitosos em geral balançarem ao som do tambor como se não houvesse amanhã. Um cantinho escuro, quente e barulhento, onde ninguém julgava os movimentos de ninguém. Esse templo sagrado era conhecido, na aurora do terceiro milênio, como “o porão do Madame Satã".

Conhecedores da noite paulistana já devem ter associado o nome à clássica e trevosa balada situada no coração do bairro do Bixiga. Um casarão histórico, tombado e lúgubre, palco de eventos icônicos da cultura urbana brasileira dos anos 1980. No meu caso, frequentei o lugar uns vinte anos depois, num momento não tão icônico assim. Um ambiente que outrora recebera Cazuza, Titãs e Inocentes havia se tornado lar de góticos fora de época e personalidades do calibre de Marcinho, o simpático barman que se dividia entre as tarefas de embebedar meus amigos e flertar ad infinitum com minha namorada à época. Grande sujeito, o Marcinho.

Estando o lugar em pé até hoje (ao menos no momento em que escrevo), temos que admitir que ele tem algo de especial. E não é minha intenção fazer nenhum resgate histórico, mas sim prestar homenagem à casa soturna que tanto bem me fez. Todo paulistano, mesmo honorário, precisa de um inferninho para chamar de seu. O Madame Satã era o meu e o de muitas outras pessoas. Um lugar tão diabólico que o capiroto já se anunciava no nome.

Lembro bem da primeira vez em que pisei lá dentro. Eu tinha dezoito anos, um metro e noventa e um e sessenta e sete quilos. Para dar uma ideia da magreza, o ponto em que as minhas costelas se encontram no tórax era tão saltado que parecia um nariz nascendo no meio do peito. E, na flor da juventude, eu era uma criatura ainda mais introvertida do que hoje. Então, é óbvio que tive que ser arrastado pelos amigos até meu debut no casarão, sob a promessa de bebida barata e música boa.

A primeira coisa que notei ao passar da porta para dentro foi o cheiro. O lugar exalava uma mistura de Pinho Sol, cera de vela e madeira mofada. Soa horrível, mas até hoje sinto um conforto na alma quando entro num banheiro recém-faxinado. Percebi também que todo mundo no lugar usava roupa preta, menos eu. Aos dezoito, eu ainda usava a roupinha que a mamãe comprasse ou algumas sobras dos meus irmãos que por acaso servissem naquele corpo longilíneo. E não tinha camiseta preta em nenhum dos dois casos.

Me sentindo um peixe beta jogado no ponto mais profundo do Pacífico, fiz o que qualquer pessoa segura de si faria: fui até o bar e tomei, num trago só, duas doses de tequila. Detalhe: tequila nacional, segundo o Marcinho. Na sequência, peguei mais um copo de vinho doce (sic) e, antes que me encostasse numa parede à espera do fim daquela tortura, fui carregado na direção da pista de dança por um dos meus amigos.

No caminho, três coisas aconteceram. Primeiro: a tequila nacional começou a bater de leve. Segundo: fui me afeiçoando àquele labirinto de escadas e corredores pintados de treva do chão até o teto. E terceiro: meus ouvidos captaram um som. No começo, era só um ronco grave que tentava escapar pelas paredes. Mas a cada curva fechada, a cada degrau que eu descia, as notas ficavam mais claras: um ritmo reto que soava mais e mais forte. Fui me espremendo pelo caminho, desviando da multidão vampiresca, em busca da origem da batida. E de repente, depois de uma última curva, cruzei um arco de tijolos e encontrei o que eu procurava. O porão da casa. A pista de dança.

Pena que não deu para perceber que eu estava lá. Afinal, era tudo um breu só. Mas logo meus olhos se acostumaram à escuridão. E conforme a bebida subia e a pressão baixava, eu comecei a soltar os braços e as pernas. Primeiro, um discreto chacoalhar de cabeça, ainda tentando fazer com que todos os meus sentidos conversassem. Logo me acostumei com o ambiente e comecei a arriscar um passinho para cá, outro para lá. Foi então que aconteceu um momento de perfeita sincronia. No exato instante em que a tequila nacional derretia de vez minha autocensura, as caixas de som começaram a despejar um ritmo quadrado pela pista: tum-tá, tum-tá, tum-tá, tum-tá. Na sequência, entrou um contrabaixo brabo demais: tororororororororom… e então, veio a cereja do bolo. Aquela voz, saída da tumba mais profunda e desafinada do oitavo círculo do inferno: I hear the roar of a big machiiiiine… two worlds and in betweeeeeen…

Era Sisters of Mercy. Uma das bandas que meu irmão mais velho tinha me apresentado quando eu era pequeno e que, à luz das novidades da infância, parecia malvada, fodona e incrível. Quando percebi, já estava me jogando de um lado para o outro feito o Bela Lugosi, cantando cada verso a plena goela. E eu não estava sozinho. Todas as criaturas presentes naquele porão sabiam a música de cor. E juntos, entoávamos o hino daquela missa macabra e de baixo orçamento. I hear empire down… I hear empire down…

Empolgado, eu virei num gole o copo que trazia comigo. Ato contínuo, uma amiga apareceu com outro copo do mesmo vinho doce (sic), que foi embora tão rápido quanto chegou. A essa altura do campeonato, eu parecia um sátiro num bacanal: suava, ria e dançava ladeira abaixo, embalado pelo Sisters. A luz estroboscópica piscava com uma preguiça deliciosa, dando a impressão de que ninguém se mexia de verdade e de que tudo ali era uma sucessão eterna de fotos. Escorreguei por essa espiral tão virtuosa quanto descendente, conduzido pelo conjunto de bebida ruim, som alto, pouca luz, muito calor e uma profusão de cheiros, detalhes todos que faziam do porão o lugar mais perfeito da Existência. Exceto, é claro, quando o infeliz que cuidava da iluminação acendia uma luzinha contínua que mais parecia o sol, cortando a brisa de todo mundo por alguns segundos eternos. Mas tirando isso, eram só os flashes, o tum-tá e o tororom.

Não demorou muito para que a mistura etílico-sensorial desse um nó no meu cérebro. De uma hora para a outra (ao menos na minha percepção), fiquei bêbado a ponto de mal conseguir aguentar em pé. Eu tentava dançar e cantar, mas minhas pernas pesavam uma tonelada cada. Além disso, alguém tinha enrolado um bobe de cabelo tamanho família na minha língua, que não conseguia articular uma única palavra. Resultado: larguei todo o peso do corpo nos ombros da minha amiga. Pois é: ela me deu um copo de vinho ruim e, em troca, eu dei trabalho. Foi a primeira vez que queimei largada na vida, numa noite que ainda me faria mijar nas calças e tentar uma habilidosa manobra de rolamento no estacionamento de um supermercado.

Ficaram curiosos, né? Mas meu vexame vai ficar para outro dia. Afinal, essa é uma crônica sobre o Madame Satã. Como eu amava aquele lugar. Depois da primeira noite, eu tive a certeza de ter descoberto um refúgio, um lugar onde eu podia fazer o que eu quisesse sem ser visto ou julgado (tirando os momentos em que o infeliz acendia a maldita luzinha corta-brisa). Naquela pista, nós dançávamos com a parede, fazendo movimentos sensualizantes com as mãos e andando para frente e para trás, como se fôssemos o Conde Drácula enroscado em uma capa longa demais para ele. A gente cantava até perder a voz ao lado das caixas de som e elas devolviam um arroto grave e embolado, vagamente semelhante a algumas músicas que tinham sido sucesso duas décadas atrás. Fazíamos isso toda semana, enfurnados naquela pista espremida, de onde só saímos para buscar mais bebidinhas do tinhoso ou para dar um pulo rápido no banheiro. E ainda assim, tentávamos fazer isso no tempo exato de uma música mais chata que entrasse no setlist da noite. Foi nesse buraco que sedimentei minha paixão por The Cure, Depeche Mode, Joy Division, The Smiths e tantas bandas maravilhosas, além de outras bandas bastante horríveis, mas que eu continuo gostando mesmo assim.

E como todo lugar sagrado, o porão do Madame também possuía um ritual que só era servido aos iniciados. Não rolava sempre, até para manter uma certa aura de exclusividade. Mas de vez em quase nunca, no coração da madrugada, ele acontecia. Começava com o DJ, que soltava uma batidinha tercinada, tão marcial quanto todas as outras: tum, ts-ts, tá, ts-ts, tum, ts-ts, tá, ts-ts. Logo depois, entrava um baixo denso, pesadão, dando só as cabeças dos acordes: tóm; tóm; TÔM; tóm. Dava para sentir o crescendo de euforia no peito de cada um, à espera do grande acontecimento. E então, chegava o momento: quando a voz entrava, apenas nessa hora e somente nessa música, o abençoado cara da luz começava a piscar uma estroboscópica vermelha, anunciando Red Light, da Siouxsie and the Banshees. A multidão gótica vinha abaixo. Aquele pisca-pisca rubro-negro era nosso ritual de expurgo e catarse coletiva. Puta merda, que momento mágico! A pista esvaziava, deixando só os devotos ali. A luz piscava no clique da música e a gente balançava para lá e para cá, bebidas batizadas em punho, suando toda nossa frustração e angústia juvenil, aproveitando o embelezamento de pele que a luz vermelha proporcionava para trocar saliva com pessoas que nunca mais veríamos na vida. Alguns, ousados, se arrastavam para os becos mais escuros do porão, onde nem a luz vermelha chegava. Ah, que criatura destemida é o jovem.

Frequentei este antro de puro afeto e afetação durante uns cinco, seis anos. Mesmo que chovesse canivete, eu batia cartão para cumprir meu dever cívico sombrio. Naquela pista, fiz e ouvi as juras de amor mais mentirosas que o álcool pode criar; levei arranhões que deixariam o Wolverine impressionado; descobri músicas que viraram a trilha sonora da minha vida; curti meus amigos; e conheci os melhores desconhecidos que a vida poderia me apresentar, gente do calibre dos lendários Montanha, Morte e Barata, só para citar alguns. À época, o Madame era tão importante na minha vida que eu só queria que aquilo tudo existisse para sempre.

Mas não há bem que sempre dure, nem mal que não acabe. Com o tempo e o advento da vida adulta, minhas visitas ao templo da escuridão começaram a rarear. Um namorico com uma moça mais pudica aqui. Um trabalho que tomava tempo demais acolá. E assim, num silêncio lento e tranquilo, terminou meu caso com a mais gótica das casas paulistanas. Anos depois, cheguei até a voltar lá uma vez para tocar, já com a minha esposa e vocalista da banda. Até a casa tinha mudado de nome e proprietários, agora se chamando apenas Madame. Achei que seria um encontro bizarro, mas não. Foi como rever seu melhor amigo depois de uma década. Apesar do tempo e da distância, a magia continuava ali, intocada, dançando no ar junto com o cheiro de madeira velha. Houve, sim, um certo estranhamento: tive a nítida impressão de que não usavam mais Pinho Sol e também não lembro de ver tequila nacional no cardápio. Ainda assim, foi ótimo. E se as décadas a mais de vida me dão uma preguiça horrorosa de sair de casa hoje, uma coisa eu tenho que admitir: cada vez que ouço um tum-tá, um diabinho dentro de mim pensa em dar um pulo no casarão preto do Bixiga.

Imagem: Pixabay

Comentários

sergio geia disse…
Madame Satã, a icônica. E com 18 anos aprontamos horrores, não? Mas vinho doce é foda. E cheiros me pegam também. Show, Jander. Revisitou legal. É sempre bom.
Caperutto disse…
Awayyyyy... como sabe, vez ou outra ainda vou, mas não é a mesma coisa sem vocês...
Soraya Jordão disse…
Não tive oportunidade de conhecer, mas agora me sinto apresentada. Gostei do passeio.
Nadia Coldebella disse…
Que delícia conhecer um pedaço de um templo da contracultura pelos olhos de um iniciado! As descrições da arquitetura e do clima do lugar são tão boas que eu, mesmo sem conhecer, me senti lá também. Vc deve ter muitas histórias para contar, não é? Sou toda ouvidos!
Ana Raja disse…
Jander,que bela viagem ao passado vc nos mostrou. Me fez lembrar de um inferninho (como dizia o meu pai) que adorava bater ponto. Ah,bela juventude!!
Zoraya Cesar disse…
Que emocionante, Jander! Amei aos montes suas comparações e metáforas e passeei e dancei por suas linhas com um prazer imenso! Bom demais como vc desnuda sua identidade secreta de tímido que sabe onde se expandir. E as bandas!! Maravilhosas, muito obrigada por essa viagem no tempo da nossa adolescência. Já disse q sou fã de seus textos?
André Ferrer disse…
Lugar importante para o rock brasileiro. Não conheço fisicamente, mas conheço através da minha relação com a música oitentista. Os ecos daquele porão chegavam ao sul onde eu cresci. Belo texto.

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