DISSONÂNCIAS >> Carla Dias


Todos os dias, reza umas rezas de bloquear desventuras. Ainda que os milagres estejam em falta, não abre mão dessa possibilidade de recebê-los, dedicando-se aos rituais, de acordo com o que pregam as entidades envolvidas.

Tem medo de aranha, de grilo; de andar sozinha pelas ruas depois de anoitecer, de errar na conta do imposto, dos anos que se acumulam em forma de rugas, da possível falta de coerência de suas falas.

Durante uma conversa, verbalizou, por deslize da oratória, uma verdade de trincar paciência de quem não reconhece serventia no rever opinião. Ela tem cisma das mudanças paridas por reconhecimento de perspectivas mais fluentes do que a sua, mas sabe que há vícios difíceis de enfrentar, e esse é um.

Perspectivas lhe provocam taquicardia, porque chegam trazendo o desejo de conhecê-las melhor.

Apavora-se com a ideia de ficar sem pó de café e só descobrir isso às 1h46 da madrugada, quando recorrer a ele para aquecer o espírito acuado. Com faltar energia bem na hora em que assiste ao filme de remexer o dentro do espectador. Com a incapacidade de deixar para lá o que só faz machucar.

Pequenos desesperos a enlouquecem diariamente. Inquieta-se com a possibilidade de sucumbir a eles, acumular manias, enfileirar obstáculos e andar em círculos até o fim da eternidade. 

O medo mais carrancudo que a abrasa é o de nunca ser lida decentemente, melhor, com indecência de fazer sangue circular pelo corpo, como se ele fosse o salão da festa mais divertida da cidade. 

E se nunca for capaz de dizer o que ensaia nos seus devaneios? De declarar o sussurrado pela paixão nos ouvidos da coerência?

Teme passar despercebida na vida, feito uma peça de roupa esquecida no varal do que não faz falta. 

Teme nunca fazer falta. 


Imagem © Dante 🇦🇷 T, por Pixabay

carladias.com.br


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Num instante mágico, Carla nos remete a medos que todos temos, mudando, quem sabe, apenas um aqui e outro ali, são medos universais. Nunca fazer falta. Ser esquecido em breve, em vida, ou após a morte. Carla, que texto!

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