YAGUARETÉ-ABÁ 2ª parte >> Zoraya Cesar


De tempos em tempos acontecia de um homem-onça se perder nos caminhos, passar a caçar e comer humanos, permitir a livre entrada de Juruparis e outros demônios, em vez de dilacerá-los. O oposto para o qual fora consagrado.

-----

Um homem-onça é conjurado para proteger a aldeia, trazer mensagens dos ancestrais, e impedir que demônios vaguem impunemente. Ele é uma força da natureza, filho querido da terra e da lua, e sua linhagem não tem fim. Quando um deles se corrompe, todo o Equilíbrio fica ameaçado.

-----

Os anciãos discutiam há dias. Nada comiam; bebiam apenas um preparado de guaraná e extrato de formiga marabunta para permanecerem acordados até decidirem o que fazer. O homem-onça fora consagrado por eles, era sua responsabilidade. Transcendia o bem-estar da tribo, envolvia o Equilíbrio de Todas as Coisas.

------

- Esse foi o oitavo ataque.

- Precisamos encontrar uma saída antes que fique fora de controle.

- Já ficou fora de controle.

- O que será que aconteceu?

- Fizemos o ritual com o jovem errado e não desfizemos a tempo.

- Não fizemos com o jovem errado. Ele se corrompeu depois.

- Vamos resolver esse problema. Depois vemos o que aconteceu.

- Sim, isso não pode se repetir.

- De qualquer maneira, demoramos a perceber. O sangue dos inocentes mancha a nossa alma e pesa no nosso destino.

- Jamais um Yaguarité-Abá voltou para o bom caminho. Não podemos nos arriscar. Foram oito mortes, mortes demais.

- Então decidimos: ele tem de morrer. - Essa alternativa que todos estavam tentando evitar.

- Somente um outro homem-onça pode fazer isso. Quem vamos escolher?

O mais velho dos anciãos sentenciou:

- Meu neto. Não vamos chamar alguém de outra tribo, essa responsabilidade é nossa.

Naurú, como seu nome, era um bravo guerreiro e exímio caçador.  Mas, tendo sido transformado havia pouco tempo, ainda era inexperiente. A missão era praticamente suicida. Enfrentaria um Yaguarité-Abá forte, antigo, e sedento de sangue humano.

-----

A preparação era complexa, envolvia mergulhos no rio gelado com ervas de guiné, beber vinho dos mortos – feitos à base de cipó-jagube e arbusto-chacrona, para entrar em conexão com seus guias espirituais. E o benzimento das garras com alecrim embebidas com veneno de rã flecha-dourada.


O jovem partiu. Se ia voltar ou conseguir seu intento, só os deuses sabiam.

----

Por vários dias e noites ele farejou e rastreou. Em seu coração, o temor dos que respeitam o inimigo e a coragem dos que têm uma missão a cumprir.

Numa noite sem estrelas, ele ouviu o ruído inconfundível e tétrico de uma onça quebrando ossos. E o cheiro nauseante de sangue humano derramado.


Foi se aproximando, silencioso como um caiman. A visão foi estarrecedora e paralisante.

Um homem, agachado de quatro, comia vorazmente, a cara enfiada nas vísceras de uma mulher, lambuzando-se de sangue. O crânio da mulher estava perfurado, e seus olhos, vazios de vida, espantados de terror.

De vez em quando a criatura levantava a cabeça, deixando à mostra os beiços e bocarra, os olhos amarelos e a pele pintada de uma onça.

----

Naurú entregou sua alma aos deuses e pediu para cumprir sua missão, não importava o preço.

-----

O homem-onça traidor, no entanto, mais experiente, pressentiu o jovem e, voltando-se rapidamente, atacou de surpresa, uma onça por inteiro, não mais um homem. Desferiu uma poderosa patada que atingiu Naurú antes que ele pudesse se transformar em onça.

Os inimigos se encaravam, andando em círculos, emitindo roncos profundos e ferozes. Naurú não conseguia atacar, apenas se desviar das garras e mordidas mortais. Chegaria o momento em que, com os reflexos diminuídos pela dor e cansado pela perda de sangue, não conseguiria mais se defender - seu oponente poderia tranquilamente cravar os caninos em sua cabeça e quebrar sua espinha dorsal.

-----

Naurú sentiu que não aguentaria muito mais. Tudo estaria perdido – sua vida e sua honra, a aldeia, o Equilíbrio, tudo. O outro homem-onça era superior em força e selvageria. O jovem homem-onça sangrava abundantemente. Bambeou as patas e seu corpo inclinou para o lado, deixando o pescoço exposto, ofegante, a língua de fora, os olhos semicerrando. O outro rugiu, exultante, e deu o bote mortal.  

No último instante, Naurú virou-se, as patas para cima, enterrando as garras afiadas e cheias de veneno no torso do Yaguarité-Abá canibal, rasgando pulmões e vísceras, profusos jatos de sangue tingindo tudo ao redor. Naurú não era feroz ou experiente como seu irmão - era matreiro e arguto.

Arrancou-lhe a cabeça e esfolou sua pele. A alma daquele perjuro jamais veria o alvorecer dos tempos e ele não deixaria descendentes. Estava amaldiçoado para sempre. E o Equilíbrio estava, ao menos agora, livre de perigo.

De pé, empapado de sangue, a carne lacerada, o jovem esturrou seu grito de guerra, e o som fez tremer árvores, rolar pedras e desanuviar o céu. Era um Yaguarité-Abá jovem e forte, caçador de demônios, e sua linhagem não teria fim.

 
Referências
link para a primeira parte clique aqui

Antes de qualquer coisa, minha reverência profunda e respeitosa a um dos maiores escritores brasileiros, João Guimarães Rosa, cujo conto, Meu Tio, o Iauaritê, lido há muitos anos, jamais saiu da minha cabeça. 

A lenda do Yaguarité-Abá é, claro, diferente da contada acima. Faz parte do nosso maravilhoso folclore, segue uma sugestão de leitura:  Yaguareté-Abá

Rã flecha-dourada - o vertebrado mais venenoso do mundo. Seu veneno (batracotoxina) causa convulsões, paralisia e morte
https://www.hippopx.com/pt/frog-small-golden-poison-dart-frog-442976

Formiga marabunta - uma das espécies que menos dormem

Caiman - jacaré do pantanal - conhecido por ser rápido, silencioso e mortal
Leyo, CC BY-SA 3.0 CH <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/ch/deed.en>, via Wikimedia Commons

cipó-jagube e arbusto-chacrona - plantas base para preparar ayhuasca
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Comentários

Anônimo disse…
Briga de onças não é para amadores!
branco disse…
milady cumpriu fielmente o que prometeu. ótimo ritmo, imagético até os ossos. enfim, melhor até que excelente.
vai pra minha coleção.
Marcio disse…
Puxa vida, Zoraya!
Você publica seus textos a cada duas semanas, em média, mas ainda assim eu não consigo deixar de me surpreender com a sua capacidade de criação de um universo ficcional tão variado.
Quantas vidas você já viveu, para reunir tanta coisa em você?
Parabéns! Como sempre acontece, eu adorei o texto!
Anônimo disse…
Há intertextualidade. Gosto disso porque os textos, entre outras coisas, servem para renovar velhos textos. Imagino quantas pessoas irão àquele outro Rosa, que não é apenas o sagarânico Joyce Brasileiro e inventor de palavras: o do conto sobre o homem-onça! Parabéns Zoraya. André Ferrer aqui.
Anônimo disse…
Índios "produzirem" homens-onça para darem segurança para tribo/comunidade. Ainda não tinha ouvido sobre essa lenda!
Jander Minesso disse…
Já pode escrever a nova temporada do Cidade Invisível, Zoraya. Como já te falei, adoro seu jeito Neil Gaiman de modernizar lendas. E você também faz muito bem o crescendo da tensão e do embate dos bichos. Parabéns!
Ana Raja disse…
Zoraya, que fôlego você tem. Gosto muito da sua criatividade. Parabéns!
Nadia Coldebella disse…
Ah, como eu gosto da Lady Justiceira, trazendo a punição até para as maldades lendárias. Adorei como vc conseguiu fazer uma lenda virar uma história de suspense. Muito muito bom!
Érica disse…
Zoraya não perde uma oportunidade para inovar, né?
Você é de uma versatilidade a toda prova!
Agora estou esperando o texto sobre o kinojo, digo, miojo kkk
Márcia Bessa disse…
Zo, maravilhosa como sempre! Amo seus textos,mas esse em especial me levou ao um mundo mágico, fantástico, obrigada por proporcionar essa sensação maravilhosa!!! Beijos.

Postagens mais visitadas