CIRCUITO DE GATOS >> André Ferrer

Enquanto o advogado falava, Lou aproveitou. Olhou direto para a mulher que escutava as instruções a respeito do caso. Procurou um acesso. Queria vê-la por dentro. Ouvir. Cheirar. Tocar.

Há pouco, ele tinha desejado um momento de fragilidade como aquele. A chance, de repente, surgiu. Lou fez questão de acompanhar o representante jurídico da empresa até a sala dela. Mal podia esperar enquanto cruzava o hall. Que segredos Mariana revelaria? Quantas portas abriria quando soubesse que uma celebridade tinha iniciado um processo contra ela? Dois lances de escada depois, Lou decepcionava-se à medida que a conversa com Mariana avançava. Mesmo sob tensão, a jornalista parecia tão fechada como de costume. Estava atenta e bastante séria enquanto escutava o advogado, mas era só. Nada surgia daquela zona insondável e abissal chamada Mariana.

— Tudo bem — disse ela. — Obrigada. Não há muito a ser feito hoje. Vou aguardar.

O advogado olhou para Lou. Parecia impressionado com a frieza dela.

— Sim — concordou ele. — Vou estudar o processo. Na segunda-feira, volto a falar com você. É verdade: não há muito a ser feito.

Ele disse adeus, girou e descobriu-se diante de um lavabo. Então, Lou caminhou até ele a fim de guiá-lo. Mariana riu. Era um daqueles risos tão típicos dela. (Sob uma tempestade ou um Sol caribenho, Mariana sempre ria do mesmo jeito.) Lou, como veterano, sabia que ninguém ficaria admirado. Só mesmo aquele advogado, um novato, para ficar abalado. Àquela altura, as emoções veladas da mulher tinham tornado todo mundo blasé. Todos, naquela empresa, conviviam com a jornalista. Ele não. Por isso, as mãos do advogado abriam e fechavam a pasta. Seus olhos incrédulos varriam o teto, o chão do corredor, os primeiros degraus da escada e o rosto de Lou, que mal podia esperar para dizer algo.

À medida em que descia a escada, Lou percebia que suas chances diminuíam. Logo, cruzariam o hall e aquele homem voltaria ao seu escritório ainda ignorante sobre o lugar inacessível chamado Mariana. Sobre a prioridade dela que, no final das contas, era perscrutar a vida dos famosos, tirar toda a carne deles, revelar o branco dos seus ossos. Incomodava, Lou, a necessidade de explicar àquele advogado que apenas os outros (a plateia, a concorrência, a alma esmiuçada de alguma celebridade) deveria sentir qualquer coisa. Explicar, sobretudo, que o humor de Mariana comportava-se como uma inabalável linha horizontal.

Dois lances de escada abaixo, Lou resolveu desacelerar o apressado representante jurídico. Durante um rápido cafezinho, ele colocaria o homem a par de tudo com que estaria lidando nos próximos dias. Então, eles pararam diante do refeitório.

— Eu aceito — disse o advogado.

Lou tirou um espresso para o homem. Procurou o açucareiro. Não teve sucesso.

— Ninguém usa açúcar por aqui. Então, devem ter dado um fim ao açucareiro. Adoçante?

— Pode ser.

— A Mariana é uma figura — disse Lou.

— Tenho a impressão de que será um caso difícil.

— Numa segunda oportunidade, ela se abre.

— Acho que não. Disseram-me que a mulher é inacessível.

Lou engasgou. O café adoçado com aspartame subiu até as suas narinas. Ele corrigiu o fluxo. Tossiu. Pigarreou. Felizmente, alguém tinha colocado o advogado a par da situação. Mariana era mesmo inacessível e isso fazia bem para ela. Dava-lhe prazer, o terror que a inacessibilidade causava nas pessoas. Então, Lou lamentou o fato de que o advogado, naquela altura, não tivesse sequer um atalho. Nem imaginava como aquele homem começaria a abordar a incógnita chamada Mariana. Por outro lado, ficou satisfeito quando pensou em si próprio. No seu caso, uma luz havia surgido poucos dias antes. Okay. Uma esperança, mesmo que remota, em relação àquele mistério em forma de mulher. Algo que o advogado demoraria a ter ou, talvez, nunca tivesse.

Alguns dias atrás, Lou tinha conhecido uma mulher da idade de Mariana. Estava na recepção. Eles começaram a conversar porque ela riu de uma piada que Lou soltou enquanto observava um funcionário trabalhar. Ele consertava algo no computador da recepcionista.

— O defeito é de back-end, mas ele vai dar o seu jeitinho front-end.

— Muito adequado — disse ela. Ria tanto que Lou reconheceu nela uma profissional da área de tecnologia.

— Uma verdadeira gambiarra — fez ele.

A mulher estava há pouco na cidade. Esperava uma amiga que trabalhava ali. Os dois conversaram e trocaram contatos. Meia hora depois, Lou estava na sua mesa de trabalho e Mariana, junto com a tal mulher, cruzou o hall. Então, ele somou algumas pistas. Concluiu que algumas falas faziam sentido. Okay. Aquela era a amiga de infância de Mariana. Depois de muitos anos, moravam de novo na mesma cidade. Lou, assim, começou a ter esperanças.

— Uma conveniente amiga de infância.

Daquele dia em diante, ele ensaiava o seu plano. Tinha receio de que Mariana achasse estranha uma aproximação com a sua amiga de infância e percebesse aquela ideia que, sabidamente, figurava entre as ideias mais manjadas da História dos relacionamentos. Apesar disso, Lou considerava aquele o único tipo de abordagem possível com Mariana. A única forma de desvendá-la e, por conseguinte, conquistá-la, era mediante a pessoa que melhor a conhecia. Por isso, Lou queria encontrar o momento e a maneira mais favoráveis. Ele precisava agir com maestria. Não queria colocar tudo a perder. Afinal, encontrara o trunfo que muitos sonhavam em relação à encantadora e hermética Mariana. Muitos que, como Lou, fracassavam todos os dias. Sofredores de longa data e, também, sofredores novatos como aquele advogado.

— Excelente café! — disse ele.

— Sim.

— Preciso ir embora. Vou estudar esse caso espinhoso.

— Boa sorte.

— Obrigado.

IMAGEM: Freerange Stock
Às vezes, Lou saía do trabalho, subia na sua bicicleta e ia passar o happy hour num centro comercial vintage, ponto de encontro que ficava entre dois condomínios, o seu e o Rio Dourado, local onde residia a melhor amiga de Mariana. Além de outras informações, ele tinha levantado essa durante a semana. Um encontro casual, definitivamente, era o que mais se aproximava da perfeição. Era necessário, portanto, chegar logo ao centro comercial. O maior movimento acontecia entre as dezoito e as dezessete horas. Por isso, Lou foi breve quando entrou na sua casa. Morava com a mãe e as irmãs. No dia seguinte, elas estariam ausentes. Iriam à zona rural. Passariam o dia na casa de campo do avô. Mas, isso, seria no sábado. Todo cuidado ainda era pouco. Tomou banho. Vestiu-se. Saiu com a sua bicicleta. Felizmente, nenhum atraso ou impedimento. São e salvo, a caminho do centro comercial, ele apreciou os últimos raios de Sol que avermelhavam a sexta-feira.

Durante quarenta minutos, Lou circulou pela galeria e ocupou uma das mesas da Flora Anticqua, uma sorveteria temática. Ele gostava do sorvete de pistache e do affogato que eram servidos no lugar. Tudo, por lá, era no estilo dos 1950. Vermelho e azul em tons pasteis. Móveis niquelados. Balcões de fórmica.

Depois do affogato, Lou reparou que o seu coque despencava. Então, ele pagou a conta e foi até o banheiro dar um jeito no elástico que prendia os cabelos. Quando saiu, tornou a circular. O movimento estava fraco. Nem sinal da tal amiga de infância.

No sábado, Lou acordou tarde. As três mulheres e os dois gatos já tinham saído. Havia um bilhete sobre a mesa do desjejum.

A primeira coisa que Lou fez foi lavar a sua bicicleta. Na garagem, ele retirou a bolsa. Desatou as tiras de couro. Muitas vezes, Lou carregava o seu notebook naquele compartimento. A pintura estava empoeirada em vários lugares. Então, Lou começou a esfregar o quadro com uma esponja grande. Depois, concentrou-se no banco revestido de couro e nas rodas. Aos poucos, as faixas laterais dos pneus voltaram a ficar branquíssimas. O farol niquelado retomou o seu brilho. Era uma bicicleta nova, mas que tinha um aspecto antiquado. Uma bicicleta cheia de estilo.

Uma hora depois, Lou já tinha encerado a bicicleta. Então, ele foi até a sala e testou o peso de uma das caixas que estava no chão. Lembrou-se do conteúdo do bilhete deixado por uma das suas irmãs. Respirou fundo. Arrumou o coque. Abriu a primeira caixa.

Havia inúmeras peças dentro das caixas. O folheto descrevia o conteúdo como o circuito para gatos mais completo do mercado. Lou reuniu a coragem e as ferramentas de que dispunha. Verificou na sua agenda se, realmente, aquela era uma das datas reservadas para os seus afazeres domésticos. Sim. Não só era uma daquelas datas como ele tinha falhado em duas outras datas anteriores. O sábado (e, quem sabe, até mesmo o domingo) estava perdido. Voltou ao bilhete. Duas folhas cheias de instruções. Então, Lou analisou as paredes onde o playground felino seria instalado. Separou as peças de acordo com o folheto e as indicações do bilhete. Trabalhou com afinco por uma hora e meia. Percebeu, assustado, que ainda faltava muito, mas pensou que, pelo menos, a ponte e o arranhador estavam prontos.

Lou girou o cilindro, que se moveu com facilidade. Um carretel revestido por uma corda bem grossa e felpuda. Então, ele decidiu que podia fazer um intervalo. Ligar o notebook. Acessar as redes sociais. Bisbilhotar Mariana e a sua grande amiga.

Alguns dias atrás, Lou tinha tido aquela ideia. Já que a amiga de infância de Mariana tinha surgido no seu caminho, ele pensou em aproveitar e conhecer os desejos da jornalista. A melhor amiga de Mariana se transformara num trunfo. Aos poucos, através de uma abordagem cuidadosa e gradual, Lou acreditava que conseguiria todos os elementos capazes de atrair Mariana. Capazes de dotá-lo daquilo que Mariana mais desejava.

Lou entrou no seu quarto. Pegou o notebook. Ouviu um barulho na sala. Quando voltou, a fim de verificar o que havia ocorrido, encontrou a ponte no chão. Ora! Se daquela forma, tinha despencado (isto é, sem um gato sequer), o que esperar para depois? Diana e Aquiles eram dois gatos bem pesados. Então, Lou começou a refazer a ponte. Precisava pensar numa forma eficaz de fixar aquela geringonça.

O circuito ficou pronto no final da tarde. Sentado no grande sofá, Lou percebeu que uma grande madeixa estava solta atrás da sua cabeça. Com as duas mãos, ele prendeu os cabelos enquanto escutava a porta da garagem abrir e fechar. Escutava as risadas. O carinho que uma das irmãs declamava para Diana e Aquiles, o casal de gatos. Então, essa mesma irmã entrou na sala e colocou as mãos na cintura. Lou ficou em pé. Ele gesticulou. Franziu o nariz e a boca. Queria saber o que havia de errado.

— A ponte.

— O que há com a ponte?

— Lugar errado.

— E qual é o lugar certo?.

— Devia saber.

— Como?

— Falta de atenção.

— Por acaso, está no bilhete?

— Nem precisava. Óbvio demais.

— E o certo? Qual é?

— Ao lado da janela. Entre o arranhador quadrado e o platô.

— Ah! Como eu poderia saber? — disse Lou.

Então, ele descarregou o corpo no sofá, desfez o coque e passou as mãos nos cabelos desgrenhados. Ao lado, Diana curvou-se toda e saltou sobre o macho, que se eriçou e abaixou o corpo. Nos calcanhares, Aquiles fugiu para a cozinha.

— Como eu poderia saber? — Lou repetiu.

Agora, ele tinha que refazer o trabalho. Modificar a ponte. Gastaria mais do seu sábado naquilo.

Quando terminou, Lou conferiu as horas: cinco e quarenta e cinco da tarde. Descobriu-se, então, exaurido. Alcançar Mariana parecia impossível àquela altura mesmo tendo a noite de sábado e todo o domingo à disposição. Mesmo tendo, agora, a tal amiga de infância como um possível atalho. A montagem do playground dos gatos acabou com qualquer chance de movimento naquele fim de semana.

Na manhã seguinte, Lou acordou tarde. Sentia-se amarrado. Naturalmente, ele teve o dia todo para colocar o seu plano em prática, mas procrastinou a possibilidade de desvendar Mariana. Lou dormiu tanto que o sono parecia um visgo na manhã da segunda-feira. No trabalho, abandonou-se diante da mesa. O advogado passou. Cumprimentaram-se à distância. Lou ficou quieto. Sequer a curiosidade conseguiu movê-lo. Então, ele abaixou a cabeça. Olhou para a Lua Minguante que o resto do café desenhara no fundo da caneca. O manto da inércia envolvia o seu corpo. Obrigava-o a adiar até mesmo o segundo espresso da manhã.

Vinte minutos depois, Lou ergueu-se. Parecia um grande peso ligado a um guindaste enferrujado. Queria outro café bem forte e adoçado com açúcar de verdade. Por isso, arrastou-se até o hall. Quando passava pelo acesso da escada, esbarrou em alguém.

— Doutor! — disse Lou. — Perdão.

— Meu rapaz! Você teria um daqueles espressos?

— É claro que sim. Na verdade, eu estou indo até lá.

— Perfeito — disse o advogado. Ele vinha da sala de Mariana. Enquanto tirava o espresso, Lou perguntou como estavam as coisas.

— Uma encrenca das boas.

— Então, ela vai se dar mal!

— Se continuar fechada, sim. Ela precisa revelar um informante para que eu possa fazer a defesa com mais eficácia.

— Ela precisa entregar uma fonte.

— Sim. Uma fonte! É assim que vocês chamam.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Pobre Lou! Perdeu-se numa fossa abissal Mariana e, em vez de tentar subir à tona, só se perde ainda mais. Que texto mais bem elaborado, André! Cheio de detalhes, cheio de pistas sutis, vai prendendo a gente, querendo saber o que é, na verdade essa história toda. Perfeita a caracterização do Lou! Vc o colocou na história sem nunca falar o q ele na verdade vai fazendo ali.
Jander disse…
Se usasse o cabelo curto, era um trabalho a menos. Tô com a Zoraya, André: muito legal ver como você aproveitou o tempo e foi descascando a cebola sem pressa e sem obrigação. Me lembrou até o Alien. Sei que a comparação soa bizarra, mas lá também o bicho (aqui, os gatos) só aparece depois que a história já está andando, o que é um baita desafio pra se encarar.
Nadia Coldebella disse…
Dá pra achar um monte de metáforas nessa historia, não é? Ele mesmo estava num circuito para gatos, sem conseguir achar a ponte que o levaria a Mariana. Da mesma forma que montar o circuito para os gatos foi extenuante, encontrar o caminho para Mariana também parece ser...
E esses seus finais, secos e desesperançados, eu gosto muito! Se bem que esse abre uma chance de parte dois.
Gde abço

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