SÓ MAIS UMA MANHÃ >> André Ferrer

As pessoas que ocupavam a mesa riram. Três homens e uma mulher. Eles riram porque Estevão se levantou assustado. Ele vasculhava os bolsos. Olhava ao redor. Procurou atrás das garrafas vazias que estavam em cima da mesa.

Um dos homens — o que mais ria — usava uma camiseta de mangas cavadas. Suas tatuagens baratas ficavam à mostra. Umas feitas na prisão. Outras, na rua, por aprendizes de desenhista que ele encontrava. Eram, de fato, tatuagens muito ordinárias. Tinham aquele traço impreciso, azulado e desvanecido das tatuagens desse tipo. Os braços do homem tremiam enquanto ele ria.

Então, a mulher esticou o pescoço. Seus dentes amarelos nasciam e morriam atrás do batom intenso. Numa das orelhas, o lóbulo era flácido e alongado. Tinha sido rasgado e parecia a língua bifurcada de um réptil. (Acidente ou não, Estevão ainda desconhecia. Fazia pouco tempo, afinal, que ele andava com aquelas pessoas. Quem sabe, um puxão produzira aquilo. Ou, talvez, ela tivesse enroscado o brinco em algum móvel.) A mulher travou o riso com dificuldade.

— O que foi? — disse ela. — Perdeu alguma coisa Estevão?

Os demais também se manifestaram:

— Sim. O que foi?

— Perdeu alguma coisa?

Explosão de risos.

— Meu telefone — disse Estevão ao redor da mesa. — Acho que perdi o meu telefone.

Estevão era vendedor. Todos os seus clientes estavam no telefone. Se não fosse por isso, ele não se importaria. Seu aparelho era dos mais simples. Empregado com exclusividade nos contatos de negócio. Além do que, ele já não tinha mais para quem ligar e, decerto, havia poucas pessoas que se interessavam por ele. A não ser, é claro, os seus clientes.

— Tudo bem — disse o homem da tatuagem.

— Oh! Não tão rápido — fez a mulher do lóbulo bífido. — Não acabe, tão rápido, com a brincadeira.

O tatuado riu. Levantou um pouco o traseiro da cadeira. Devolveu o aparelho telefônico para Estevão.

IMAGEM: Wallpaper Flare

— Sente irmão! Vamos pedir outra cerveja. Está muito cedo.

Estevão apanhou o telefone e hesitou. Seria uma boa ideia continuar? Precisava retomar os bons hábitos. Restaurar o seu velho e prazeroso costume de levantar-se cedo e curtir as manhãs. Mesmo assim, tornou a sentar e uma nova cerveja foi aberta.

Estevão acendeu um cigarro. O tatuado, a mulher e os outros dois arrumaram um novo assunto, que Estevão deixou passar como uma nuvem branca e disforme que passasse ao lado de uma estrada. Ele tinha ficado naquele bar, mas sabia que o certo seria ir para casa. Para a sua casa mais próxima. Ou, quem sabe, para a sua verdadeira casa. Uma casa que ficava a quilômetros dali. (A casa que ele tinha deixado, há tempos, por uma estupidez.) Então, a mulher da orelha rasgada estapeou o ombro de Estevão, que forçou um sorriso. Ele nem sabia do que eles riam àquela altura. Ultimamente, eram todas aquelas coisas e pessoas que o impediam de voltar para a sua casa. Qualquer que fosse a sua casa.

— O que foi?

— Acho que isto paga a minha parte.

— É cedo.

— Não. Já vou indo.

— Vai aonde?

— Casa.

Sempre que chegava, pensava no quanto seria bom prosseguir e arrumar as malas. No quanto seria bom ir para a sua outra casa. No escuro, sentava-se e perdia o ânimo. Apenas algo muito forte seria capaz de fazê-lo adotar uma atitude ainda mais radical. Uma carga externa. Um milagre. Então, ele tateou as paredes até encontrar a poltrona. Como das outras vezes, Estevão sentou-se, colocou os pés cruzados em cima da banqueta e apertou os ombros com as mãos.

Há quase três anos, ele tinha deixado a sua verdadeira casa. A outra casa onde, agora, residia apenas uma pessoa. Sua esposa. Ex-esposa. Ficava tão longe dali!

O motivo tinha sido o ciúme. Uma bobeira que acabou tomando volume e transformara-se, primeiro, em distância e, depois, naquela incapacidade de tomar uma atitude e voltar atrás. A imobilidade patológica em que se encontrava.

Quando acordou, eram três horas da tarde. Então, ele apalpou os bolsos. A mão direita e todo aquele braço estavam adormecidos. As costas doíam por causa de tantas horas pressionadas naquela poltrona. Enquanto se esticava, a mesma ideia macabra apoderou-se do seu espírito. Tinha perdido outra manhã na sua vida.

— Oh! Seu Juca! — disse. A cabeça caída para trás. — Perdi o meu cliente. A essa altura, ele já deve ter fechado com outro.

Endireitou a cabeça. Precisava ligar para o seu Juca. Salvar a venda. Olhou para o aparelho apertado numa das mãos. Um aperto contínuo. Congelado. Congelante. Então, lá estava a imobilidade de novo! Uma nuvem branca e disforme, que passava ao largo do seu caminho. Tudo o que havia de real e prático na sua vida.

Ele cerrou as pálpebras. Os olhos ficaram úmidos. Tinha certeza de que era meramente por causa da força com que fechava os olhos. Ele não sentia qualquer tipo de emoção. Sequer o fato de ter perdido o cliente provocava a raiva na intensidade que deveria. Então, Estevão abriu os olhos.

— Vou reagir.

Levantou o ombro. Começou a mover o braço. Aproximou a mão. Trouxe o telefone para a frente do seu rosto. Então, ele acionou a lista de contatos no aparelho. Ligou para o homem.

Depois de ter falado com o cliente, Estevão correu os dedos na tela do telefone. Olhava, incrédulo, para a lista. Tinha conseguido. Remarcara o encontro. Quem sabe, ele ainda conseguiria salvar a venda. Perto do seu Juca, na lista, estava Jorge, que morava ao lado da outra casa. Jorge era caminhoneiro. Vivia na estrada. Jorge era o único contato que restara entre Estevão e o passado.

Naquela tarde, ele tomou banho, fez a barba e arrumou-se a tempo de sair antes que o horário comercial terminasse. Estevão caminhava rápido, sob o Sol das dezessete horas, quando encontrou o homem das tatuagens. Ambos cruzavam a praça. Do outro lado da rua, ficava o armazém do seu Juca.

— Aonde vai? — disse o tatuado.

— Trabalhar.

— Eu já terminei por hoje.

— Conta outra.

— Ora! Vamos ao Esculacho.

Estevão riu. Então, emendou:

— Por que você não espera um pouco? Só vou conversar com um cliente ali do outro lado da rua.

— Tudo bem.

Antes de atravessar a rua, a dupla teve que parar repentinamente. Um carro estacionou diante do armazém. Dois homens caminharam de encontro a Estevão e o tatuado. Eram fortes. Um deles socou o estômago do tatuado. O outro empurrou Estevão. Dezenas de folhas e mostruários espalhados. A valise do vendedor rodopiou e foi cair no gramado. Imediatamente, as pessoas que estavam no armazém saíram a fim de assistir à cena. O proprietário também foi até a rua e viu quando Estevão se levantou. Entendeu muito bem que Estevão e o tatuado estavam juntos.

Antes de entrar no carro, um dos homens ameaçou o tatuado: — A dívida que você tem comigo não é tão grande assim. Dá para você pagar até amanhã. Entendeu? Você tem até amanhã para me pagar.

Enquanto Estevão recolhia os papéis e os mostruários, o tatuado se levantou.

— O que estão olhando? — disse ele para as pessoas ao redor.

O vendedor cruzou a rua. Fechava a valise com dificuldade quando deu de cara com o seu Juca. Estevão parou sobre a guia. Desceu da calçada com um pequeno e desajeitado salto para trás.

— Boa tarde — disse.

O dono do armazém meneou a cabeça com desaprovação.

— Que espetáculo heim?!

— Peço desculpas. Eu fui pego de surpresa.

— Eu também. Sabe, meu rapaz, a gente se surpreende enquanto conhece as pessoas.

— Vim conversar.

— Conversar? A nossa conversa estava marcada para hoje de manhã.

— Sim. Mas o senhor esqueceu? Voltamos a combinar. Liguei para o senhor. Tive um contratempo.

Naquele instante, o tatuado se aproximou. Seu Juca olhou-o com desdém.

— Diga-me com quem andas e eu te direi quem tu és.

— Irmão — disse o tatuado a Estevão. — Por que você deixa esse velhote humilhar a gente?

Estevão girou o corpo e cruzou a rua. Seguido pelo tatuado, ele pisou no gramado da praça. Caminharam juntos até o Bar do Esculacho.

Horas depois, ele descobriu que era madrugada e notou que já não ouvia o tatuado, a mulher dos dentes amarelos e um novo personagem que só dizia piadas batidas. Levantou-se. Foi tateando entre as mesas até que alguém chamou.

— A sua pasta. Vai deixar a sua pasta aqui?

Estevão voltou. Apanhou a valise. Foi para casa e teve uma surpresa, um tempo depois, ao acordar. Era muito cedo quando ele se descobriu, uma vez mais, apinhado na poltrona. Enfim, teria uma manhã.

O Sol entrava e ia bater nos pés de Estevão. Havia sons, lá fora, que ele reconhecia como sons matinais. Então, levantou-se. Ficou em pé. Sentiu-se disposto porque a cabeça não doía como das outras vezes. Foi até a janela. Vislumbrou a manhã. Algo que simplesmente não conseguia fazer há meses.

Na sua outra casa, ele costumava curtir as manhãs com a esposa. Trabalhava no período da tarde. As manhãs, naquela época, eram tão boas que, depois dos acontecimentos, tornaram-se um símbolo de um tempo feliz. Os dias passaram e até mesmo a vivência de uma manhã como aquela tornara-se algo raro para ele. Por isso, havia um componente extraordinário naquele seu reencontro com a manhã. A árvore do lado de fora. Os ruídos típicos. O modo como a luz transformava tudo numa estranha novidade. Maravilhado, Estevão entrou no seu quarto. Encontrou a sua grande mala de viagem. Começou a dobrar as melhores roupas.

À caminho da estação rodoviária, ele continuou a reconhecer os prazeres há muito esquecidos. Um menino passou. Levava a sua mochila escolar. Numa esquina, os gritos da mulher que vendia tomates e alface. O cheiro acentuado de café quando Estevão passou diante de uma panificadora. Então, um automóvel começou a se deslocar bem ao lado. Seguia-o em plena distração.

— Por acaso, você sabe aonde se meteu aquele seu amigo?

— Não.

— Soube que ele esteve gastando o meu dinheiro no Esculacho. Então, resolvi encurtar o prazo.

— É mesmo?

— Sim. E então? O que me diz? O seu amigo tatuado fugiu.

— Eu não tenho notícias dele.

— Soube que você passou a noite no Esculacho.

— Eu não sei. Fui embora antes. O tatuado ficou lá.

O carro parou. Os dois saíram. Um deles derrubou Estevão. O outro socou o rosto do vendedor. Ele colocava as mãos diante do rosto, mas aquilo era inútil.

Alguns segundos depois, Estevão ergueu-se. Ficou sentado na calçada. Sua camisa estava rasgada e ensanguentada. O telefone havia desaparecido. Sua mala de viagem também. Ele reparou que havia muita gente ao seu redor.

— Eles fugiram.

— Levaram os pertences do coitado.

— Alguém, por favor, ajude. Meu carro está logo ali. Posso levá-lo ao pronto-socorro.

Às quatro horas da tarde, Estevão acordou. Suas costas doíam. Seu rosto doía. Doía, também, todo o seu ser porque lá estava a mesma sensação de ter perdido a amanhã. O homem na mesma poltrona. Sua casa também era a mesma. Não era a casa na qual gostaria de estar.

 Então, Estevão escutou várias batidas na porta. Levantou-se. Tateou na escuridão do corredor. Apanhou uma vassoura. Queria ter algo nas mãos no caso de ser algum traficante ou, mesmo, no caso de ser o tatuado. Voltou. Abriu a porta. Quem estava do lado de fora era o caminhoneiro que residia ao lado da sua outra casa. Jorge parecia ansioso para dizer algo, mas o estado do rosto de Estevão fizeram-no adiar.

— O que houve? — disse ele.

— Um contratempo.

— Já tratou disso?

— Fui ao hospital. Entre por favor.

Nem bem Jorge começou a falar, Estevão desejou que todas aquelas coisas reais e práticas, uma vez mais, passassem ao largo. Na sala, enquanto Jorge contava tudo e, logo depois, à bordo do caminhão, a caminho da sua outra casa, Estevão queria — com todas as suas forças — que tudo aquilo se transformasse numa nuvem disforme e ignorável. Jorge, por sua vez, não ajudava. Tinha, mesmo, que repetir a história a cada quilômetro? Ele sempre encontrava um novo aspecto da coisa toda e repetia. Repetia. Repetia. Enfim, aquele era o seu jeito de lidar com o tema.

— Foi rápido.

— Nem me diga.

— Essa doença costuma ser assim.

— É.

Enquanto Jorge falava, Estevão sequer prestava atenção nos detalhes. A voz de Jorge, então, era uma nuvem branca, sem forma, que Estevão tentava ignorar. Quem sabe, com mais um pouco de esforço, ela não passaria do lado de fora? Uma nuvem que passasse ao largo do vidro úmido e gotejante do veículo!

— No começo de tudo — disse Jorge. — Eu fiquei sabendo. Notei que todos eles não queriam ouvir falar de você. Então, eu me perguntava: por que simplesmente não avisam o Estevão a respeito da esposa? Procurei ficar neutro. Não me intrometi na história de vocês. Fui viajar, o que aconteceu há duas semanas. Ontem, quando voltei, ela tinha partido. Então, pensei que o mínimo a ser feito seria vir até aqui.

— Obrigado.

— Peço desculpas por não ter entrado em contato antes.

— Ora! Não se preocupe.

— Ontem, eu tentei falar com você.

— Perdi o celular.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Que petardo, André! Que angústia! E como vc levou bem as alternâncias entre os acontecimentos externos e os internos, e mais, sem colocar em primeira pessoa, dificílimo! As descrições ótimas, principalmente a das tatuagens e a da orelha da mulher. Pancada pura. Muuuuito bom.
Jander Minesso disse…
O palavrão não pode ser banalizado, sob pena de perder o efeito superlativo. Dito isso: puta merda, André, que texto! Uma dor que vai incomodando cada vez mais e cada vez num lugar diferente, crescendo devagar num banho maria que só aumenta a agonia. E você ainda mantém essa tensão no clímax pra enterrar tudo no lamaçal do cotidiano. Que pancada, meu velho.
Nadia Coldebella disse…
Eu não sei como vc consegue imprimir esse ritmo nos textos: uma expectativa de alto, que segue uma realidade de "baixos", um baixo duro, não tão miserável, mas que termina num final seco e denso, que deixa um nó na garganta do leitor.
Pode ser uma pancada, mas talvez não seja. É que a sensação vem da quebra das expectativas que vc cria: a gente embarca no desejo da personagem,fica torcendo para ele sair da lama, mas enquanto a gente embarca no desejo, o tempo inteiro a narrativa mostra a realidade se impondo, até que no final ela mata o desejo.

É um texto claro, sem metáforas e muito direto, mas não sei como, vc consegue brincar magistralmente com as ilusões do leitor. Coisa de gênio.

Grande abraço!
Whisner Fraga disse…
Que pancada! Parabéns.
Carla Dias disse…
Não consigo parar de pensar na ironia do título...
sergio geia disse…
Pesadão, André, e muito bom.

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