CARAMBOLA! VAI CATAR COQUINHO! >> Carla Dias


Rosalinda não é linda.

Escutou essa declaração, tantas vezes, e acreditou nela... até desacreditar. Pensa nessa estampa — à qual muitos recorrem para provar o motivo de o outro não caber na definição preferida — como a feiura do aprisionamento.

Para ela, a lindeza autêntica é torta. Como não seria? Onde ficariam os excêntricos na história do mundo? Os loucos construidores de alternativas? Ela tem curvas fechadas, estradas de asfalto jamais capeado, então melhor se acostumar aos solavancos da viagem. Há quando a lindeza não consegue sair da cama, e sopra na boca de Rosalinda a palavra a ser verbalizada na sonoridade do incômodo, a mais usada ao deitar-se da vida nos ombros dela, jogando-lhe todo seu peso:

— Carambola!

Rosalinda não gosta de carambola. 

Substituiu o verbo amar pelo gostar no dicionário da sua compreensão. Tantos amam, e insistem em escancarar esse amor, reverenciá-lo. Mas basta um vento de desarrumar decididos para o amor se esparramar, escorregar pelos ralos da impaciência, do desamparo. Não ama, mas gosta na imensidão do sentimento, aceitando o perigo do não correspondido, apesar das eventuais tristezas e do requinte de crueldade da saudade ao bancar a companhia residente. E de observar o de repente que movimenta a vida das pessoas, como se jogasse xadrez.

Se bate o dedo do pé em quina, no caso de acidente ou contravenção de realidade prejudicial aos seus planos: “carambola!”. E assim também se tornou motivo de chacota. Como alguém não consegue xingar decentemente?! Faz nada direito, Rosalinda? 

Rosalinda tem dúvidas sobre o fazer algo direito, mas acredita na versão do se dedicar para viver, o que seja, intensamente, na extensão da sua verdade. Até a adolescência, escutou, com frequência desinibida, palavrões declamados durante sessões de violência. Assim, tornou-se incapaz de encontrar o tom para pronunciá-los. Reverberar palavrões ajuda a desopilar o fígado, ela sabe disso, viu acontecer com uns e outros. Aprecia como, depois de pronunciá-los, essas pessoas se sentem mais leves, ou de eles pertencerem a um vocabulário pessoal, de refinada ironia. Se não fizerem parte de uma violência — assim como as palavras de afeto ditas na mentira do sentimento —, os palavrões não a ofendem. Vem até treinando alguns, mas ainda não conseguiu passar do “vai catar coquinho”.

Quando a perturbam, às vezes na pilheria, ela diz “vai catar coquinho” de jeito ritmado, porque adora uma boa cadência. Acha leve, mas entrega o recado. Ao escutar tais palavras na própria voz, imagina-se catando coquinhos. 

Rosalinda não cabe na roupa da moda, na idade certa para o currículo exigido pela firma, na expectativa de quem aprendeu tudo como se deve. Nunca aprendeu como se deve. Não pegou atalhos, pulou etapas. Na verdade, contrariando suas expectativas, as etapas passam mais tempo com ela. Até pensou na hipótese de vingança do destino, por viver repetindo, na reza da noite, que irá mudá-lo. Demorou a compreender, mas o destino sempre foi parecido com gente: tem seu inteiro, que ninguém é capaz de desbravar por completo, e suas partes, ao alcance das histórias das pessoas.

Rosalinda não tem sonho nascido para o eternamente. Faz de tudo para estar presente, coleciona alguns desejos, os quais adoraria realizar. Mas não se importa de reformá-los ou fazer escambo para outro alguém aproveitá-los melhor. Ela tem enigmas, pensa em desvendá-los, mas mora nela a sensação de que a morte não lhe dará tempo para isso. Então, anda pela casa, de lá para cá, quase gritando:

— Carambola! Vai catar coquinho!

Logo depois, imagina-se catando coquinhos nos cabelos da morte.


Obra © Eugène Delacroix
Imagem © Art Institute Chicago 


carladias.com.br


Comentários

Minesso disse…
Empatizei fácil com a Rosalinda. Tirando a parte do dedinho na quina. Pombas, Rosalinda! “Carambola”?
Isso posto, delícia de texto. Nós, esquisitos, vivemos mais leves ao aceitarmos nossa esquisitice. E nesse quesito, Rosa dá show.
Anônimo disse…
Rosalinda não cabe no mundo e é por isso que cabe nos corações de todo desajustado. Belo texto. André Ferrer aqui.
Nadia Coldebella disse…
Acho eu que é o mundo que não cabe na Rosalinda!
Nessas horas, em que o estranhamento fica consciente para quem é o estranho, os palavrões servem para romper os quadradinhos do mundo.
E eu digo: caraca, carambola, pombas, vai ver se eu estou na esquina, etc..., todos bem vindos! O que importa é o ritmo e a intenção.
Gde abço!!
Zoraya Cesar disse…
me lembrou vagamente a personagem de Uma vida em segredo, do Autran Dourado, a Prima Biela. Que também não cabia no mundo. Que belo e triste texto, Carla. A doçura da escritora nao disfarçou a melancolia da vida dos que 'não cabem".

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