COM ZANGA E ESTRIPULIA >> Sergio Geia

 


— Não espeta assim, vó, tá doendo! 

A ponta da agulha de aço, como uma criança com birra, teimava em penetrar na pele. A sola do pé, acostumada a relva, terra e pedras, mas não a uma lasca de vidro que de tão pequena e insignificante quase não se via, mas se sentia, tinha uma casca de rocha que se mostrava refratária ao instrumento. 

A mulher, no entanto, experiente, acostumada a coisas do tipo, nem dava atenção ao choramingar do menino e cutucava com gosto, tinha que encontrar de vez aquele grão que se escondia na sola escura de sujeira. 

— Ai, vó! Ô vó, vai devagar, caramba! Tá doendo! 

O menino desde sábado andava sem encostar o pé no chão, dizia a mãe; torto, pulava pelos calcanhares, mas ainda assim, ainda que impedido de fazer estripulias, não deixava ninguém chegar perto e botar a mão, nem mãe, nem pai. Até que ela não aguentou. Aproveitando-se da visita e de um instante de distração, pegou o moleque de jeito. 

— Daqui você só sai andando que nem gente. 

Tal qual uma veia bailarina, o pequeno vidro escapava da astúcia da mulher que manejava bem a agulha; quando imaginava que fosse sair ele se escondia, e parecia penetrar mais fundo na pele. 

— Ô, mas que danado esse bichinho! 

Quando um breve e inesperado silêncio se impôs, calando-se o choramingar já dominado pela tenacidade da oponente, ouviu-se ao longe um ranger de motor, cujo som era trazido pelo vento. 

— É o Netão — disse a mulher. 

Nem bem falou, e um grupo de crianças saiu da casa a correr tomando de assalto o alpendre, e depois, a porteira. O menino se inflamou: 

— O tio Neto, vó, eu quero ir, o tio Neto, deixa eu ir, vó?! 

A mulher ignorou a súplica e continuou seu ofício disposta a dar cabo do vidro o quanto antes, afinal, tinha o almoço a preparar. 

Então, diante da recusa da matriarca que não se rendia aos apelos do menino sentido, o choramingar recomeçou. Agora, com maior ímpeto, e aos soluços. 

— A vó não gosta de mim! Mãeeeeee! Ô mãe! A vó não gosta de mim! O tio Neto chegou, ele traz doce, eu vou ficar sem. A vó não deixa eu ir, ela não gosta de mim, buááá, buááá. 

As súplicas do pobre eram contidas pelas tias, embora a mãe demonstrasse certa aflição, talvez até pena do menino que só queria correr com os outros meninos atrás do tio. 

De repente, ouviu-se algo novo que, de imediato, calou a todos: 

— Aqui! Olha o que eu encontrei: o danado! 

O choro se recolheu. As tias e a mãe fizeram silêncio. As crianças na porteira emudeceram. Todos sabiam que algo grandioso havia acontecido. 

Sobre a fina fralda branca estendida no colo da mulher, havia, segundo ela, o pequeno caco de vidro. A mãe olhou, as tias olharam, uma chegou bem perto, e todas concordaram com meneios de cabeça. 

Desvencilhando-se da perna magrinha, a mulher falou: 

— Agora pise no chão, menino! Pise forte, ande! Veja se sente algo. 

Ele pisou, pisou, pisou mais uma vez, e nada sentiu. Saiu correndo na direção dos primos, agora como gente, aliviado, confiante. A mulher sorriu para as filhas o velho e conhecido sorriso da vitória. 

— Viram como é que se faz? Agora venham, preciso de ajuda na cozinha. 

E o alpendre encontrou o silêncio, só quebrado de vez em quando pelo cantar dos passarinhos. 

Em seguida, foram as crianças que correram para o gude. Levaram consigo a alegria da estripulia, e a zanga pelo engano da avó, tão boa em tirar caco de vidro de pé, tão ruim em reconhecer sonido de carro.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Uau, Serginho! Que história mais doce, mais linda, mais querida e nostálgica!

Você trouxe um recorte bem comum na minha infância, quando a gente brincava de pé descalço no sítio da minha vó e vivia com espinho no pé. A criançada continuava correndo e a noite chorava as magoas do espinho. Ai vinha minha mãe, tenaz costureira, arrancar as farpas do dia.

Mas a gente adultece e esquece essas pequenas coisas, que parecem tão sem importância mas são repletas de significado. Olha, essa semana minha mãe me chamou para tirar um caco de vidro do dedo dela, que entrou quando um copo se quebrou enquanto ela lavava louça. Ela não enxerga direito, então agora ela precisa dos meus olhos...

Nem sei o que dizer, me emocionei aqui.
História maravilhosa!
sergio geia disse…
Nádia, esse seu comentário trouxe a emoção pro lado de cá. Obrigado.
Alfonsina disse…
Que história deliciosamente singela e nostálgica! Tão bem escrita, tão redondinha, com cada detalhe no seu lugar. Me senti ali, em empatia ao mesmo tempo com a criança, a vó e a mãe. Lá em casa era meu pai que tirava bicho do meu pé! Tem algo realmente muito especial neste cuidado. Obrigada pela deliciosa leitura 💖
Zoraya Cesar disse…
que delícia de doçura essa crônica! Também me levou a momentos esquecidos e relegados ao desimportante que, na verdade são os mais importantes, pois nos tornam mais humanos,de um tempo em que nao havia contas a pagar e que pais e avós tomavam conta de tudo, até de cacos de vidro pelo caminho. Obrigada!
sergio geia disse…
Queridas Alfonsina e Zô, grato pelos comentários que me enchem de alegria

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