PROVOCAÇÕES >> André Ferrer

 

As duas entraram e a menina que morava naquela casa fechou a porta e ganhou a dianteira. Visto pela primeira vez, o ambiente paralisou a visitante.

"Gabi! Você vai ficar parada no meio da sala?"

Inúmeras vezes, ela tinha ficado numa esquina próxima, a pedido da amiga. E também, a pedido de Luciana, Gabi esperara do lado de fora, junto ao portão ou no meio do jardim, em várias ocasiões. Naquela tarde, mal acreditava. O grande suspense em torno da nova residência da amiga chegava ao fim.

"Anda, Gabi", ordenou Luciana, que terminava de cruzar a sala e já dobrava o corredor que as levaria ao quarto. Gabi foi atrás.

"Estou indo. Estou indo", ela disse, ajeitando timidamente a mochila nas costas.

A casa era linda. Gabi fazia de tudo para encontrar o mau gosto de que tanto a sua amiga falava, mas nada destoava nas escolhas feitas para a decoração.

No final do corredor, havia um belíssimo tapete. Acima, em uma janela voltada para o poente, o dia terminava cor-de-rosa e agitado. Sua luz fraca e batida pelo vento vibrava no chão e no tapete filtrada pela cortina branca. Música, risos e cochichos brotavam na cozinha entre sinozinhos de louça e talher.

"Luciana, tem gente na..."

"Pisiu!"

Como se aproximavam da cozinha, Luciana parou diante de Gabi, agarrou o antebraço da amiga e puxou.

"Ai, ai, ai!"

Ainda que Gabi esticasse os olhos, não conseguiria espiar através da porta. Quando chegou ao quarto, sentia frustração por ter sido rebocada.

"Sabe, Gabi, desde que a minha mãe se meteu naquele maldito doutorado, esta vida se transformou num verdadeiro inferno."

Luciana revirou a gaveta do criado mudo. Estava inquieta.

"Eu já sei: o dinheiro que o teu pai te dá tem que durar exatamente um mês. Acertei?"

"Eu é que já sei Gabi! Venha comigo."

"Para onde?"

"Venha comigo."

As duas então avançaram até a suíte do pai de Luciana. Gabi ficaria no corredor.

"Eu já volto."

"Luciana."

"O que foi?"

"Nós ainda vamos ao shopping?"

"E o que é que você acha bobona?"

"Calma... Eun só queria saber. Volte depressa."

Luciana fechou a porta. A curiosidade de Gabi renasceu com a mesma força de antes. Como seria o quarto do casal? Da mesma maneira que perguntara tanto a respeito da casa, perguntava-se, agora, a respeito daquele reduto inexplorado. Talvez Luciana a deixasse espiar. Mesmo que fosse de uma fresta da porta. Ela gostava tanto de correr riscos!

"Eu consegui. Vamos."

"Ao shopping?"

"É."

"Meu amor, antes, eu gostaria de espiar lá dentro um pouquinho. Posso?"

"Dê uma olhada, então, enquanto eu vigio... Mas é rápido."

"Você é um amor!", festejou Gabi e entrou.

Impecável. A única peça destoante era mesmo uma calça masculina preta, enganchada em um dos puxadores do closet. Gabi retornou, sorriu para a amiga e voltou a espiar a suíte. Com a cabeça enfiada na porta, ela teve que abafar o riso nas mãos enquanto comparava o quadro geral, ordenadíssimo, e aquela terrível calça.

"Fique quieta Gabi!"

A língua branca, que era o forro interno de um dos bolsos, pendia da roupa e gritava escandalosamente. Uma coisa irônica, violenta, provocativa.

"Temos que ir."

"Obrigada. Pode fechar a porta."

"Você já matou a curiosidade. Vamos ao shopping."

Logo atrás de Luciana, Gabi segurava o riso.

"Não seria mais fácil pedir?"

"Quando eu morava com a minha mãe doutoranda, era."

"Sabe de uma coisa Lu? Você reclama demais."

"E os meus motivos?!"

"Ora, pense nos presentes que ela trará da Inglaterra."

"'Tá certo bobona. Eu só preciso esperar mais um ano até que ela volte."

"Passa rápido."

"Sim. Mais um ano aguentando provocações nesta casa... Escute."

"São eles na cozinha."

"São. E como eu odeio essa felicidade idiota! Escute, Gabi, a música que eles ouvem! Uma coisa tremendamente cafona. Aliás, como tudo o que existe nesta casa. Você está vendo? Uma provocação atrás da outra. Foi para isso que eu te trouxe aqui. E agora? Hein? O que você acha?"

"Exagero seu. E até é romântico vai..."

"Uma droga!"

"Admita."

"Psiu!", fez Luciana, parada, virando-se de repente.

A um passo da cozinha, ela puxou o antebraço da curiosa Gabi que desta vez, conseguiu espiar um pouco através da porta.

Naquele instante, o casal estava de costas. Eram o pai de Luciana e a sua nova mulher, abraçados. Eles faziam qualquer coisa juntos diante da pia ou talvez do fogão. A caminho da rua, Gabi pensou naquela visão efêmera. Imaginou que o que os dois faziam era bastante agradável, mesmo sendo apenas uma prosaica omelete.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Ahhh, vc me enganou direitinho! muito legal! e uma nova faceta sua. boa como fazer omelete a dois.
Alfonsina disse…
Adorei ler a curiosidade da Gabi e a irritação/ incômodo da Luciana, a forma com que Luciana faz parecer terrível e proibido coisas banais, e o fascínio que este mistério causa na amiga. Achei também o tom do texto muito justo: quando eu era pequena meu pai se separou da minha mãe e arrumou uma namorada. Eu me senti como a Luciana. Quando somos crianças temos uma visão muito especial das coisas, não sei nem dizer se mais simples ou mais complicada… e acho que você captou muito bem esta visão.

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