Juliana >> Alfonsina Salomão


Depois de anos sonhando acordada, fantasiando com um amante imaginário, sentindo culpa ao tocar-se no meio da tarde, enquanto o marido trabalhava e os filhos estudavam, enfim Juliana dera o passo.

 

“Já era tempo”, disseram-lhe os amigos mais próximos. “Você merece”. “Que bom ouvir isto”. O adultério foi acolhido com carinho e generosidade. Para Juliana esta foi a prova de que, nos últimos anos, soubera se rodear de pessoas de qualidade, deixando para trás as fracas, as invejosas, as tóxicas. 

 

“Você está se liberando de seus imperativos morais”, disse-lhe a psicanalista lacaniana, uma mulher competente e elegante que sintetizava com perfeição o fluxo de palavras desordenadas expelido por Juliana na sala chique do consultório. Geralmente Juliana falava com pressa, antevendo o momento em que a mulher diria: “Vamos parar por aqui”. Certa vez ela verificou, olhando o telefone ao sair da sala, que a sessão não durara nem sete minutos... Ficou chateada, o minuto de análise lhe pareceu caríssimo. Mas naquele dia Juliana falava, pausava, recomeçava, e não era interrompida. Ao dizer “agora me permito”, ela mesma decidiu que a sessão podia terminar. Estava tudo bem, beleza pura. Pra quê mais palavras?

 

“Estou me liberando dos meus imperativos morais”, repetiu baixinho enquanto tomava uma limonada no café onde gostava de sentar depois das sessões. Muitas vezes chorara ali. Hoje se sentia leve. “O gosto da liberdade”, foi o pensamento barango que lhe veio à mente. Sentiu que seria feliz para sempre. Sabia que não era verdade. Ninguém é feliz para sempre. Ou o tempo todo. Tempestades ainda virão. Mas hoje Juliana degustava a calmaria. E estava muito bem assim.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Eu confesso que ler esse texto me chocou.

Por um lado eu fiquei feliz pela liberdade provisória da moça e, por outro, meu lado moralista condenou a atitude e ainda questionou: como ela recebe apoio por enganar alguém?

A minha conclusão foi óbvia: isso não é da minha conta e minha opinião não importa. Cada um faz a escolha que quer, consciente ou não, e arca com as consequências depois. Para mim, resta saber se a mesma escolha me cabe.

E é exatamente aí que me dei conta da desconcertante maravilha que esse texto fez. Uma das funções perfeitas da literatura, que é confrontar e questionar nossas razões e morais. Boa literatura é perturbadora mesmo, porque arranca da gente coisas que jamais diríamos em voz alta.

Show, Alfonsina! Grande bjo!
Alfonsina disse…
Obrigada Nadia querida pelo comentário generoso! Fico feliz que ele tenha provocado reflexão, ainda que a partir de um incômodo. Quis realmente trazer este paradoxo com esta crônica: como descrever um ato adultério como algo benéfico e sem moralismos ? Para uma mineira que estudou em escolas de freiras toda a vida, como eu, esta desconstrução também não é simples. Primeiro pensei em escrever um texto erótico, mas depois pensei que não conseguia criar empatia ou questionamentos por este viés. Seu comentário conforta minha decisão do estilo empregado nesta crônica!
Zoraya Cesar disse…
uau. Fiquei meio atordoada também, ainda bem q Countess comentou primeiro e colocou minhas ideias em ordem. A primeira coisa que a gente pensa é no certo e errado. Depois a gente vê que julgamentos são mesquinhos e crueis. Aí a gente passa pra fase de olhar com curiosidade o carrossel de emoçoes e descobertas da protagonista. Aí a gente percebe que ela é frágil, naõ precisa de ataques ou julgamentos, mas de compaixão. Pois esse processo de desconstruçao é sempre doloroso, é como leite fervendo, primeiro escorre pela panela, depois volta ao normal. Boa sorte pra Juliana!
sergio geia disse…
Alfonsina, seu conto de hoje dialoga com o meu publicado nesta semana "O tempo é um rio". Claro que o seu é mais profundo, o meu é um recorte da vida de um casal, mas ambos tratam da mesma coisa. Adorei. Nossa história precisa ser escrita por nós; na maior parte das vezes, outros a escrevem e nós somos apenas o personagem. Juliana assumiu o controle da sua. Mas é tão difícil isso.

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