O MENINO DA MEIA PRETA >> Sergio Geia

 


Ganhei uma meia preta. Uma não. Na verdade, três, três pares de meias, para a minha alegria, todas pretas. É que eu só tinha meias azuis. Sonhava com meias pretas. 

Meia comum. Segundo os especialistas, meia social masculina, de modelagem clássica com cano longo, confeccionada em algodão, poliamida, elastano e elastodieno. Segundo o povo, meia fininha que homem, principalmente os antigos, usa quando veste roupa social e sapatos clássicos, como um Oxford, por exemplo. 

A alegria foi tanta, mas tanta, que logo tratei de entrar em meu calção de nylon branco, de vestir a minha camisa do Palmeiras com o número 7 nas costas, pegar o meu kichute, tudo para estrear a beleza da minha meia preta que acabara de ganhar. 

Saí à rua com a bola na mão, e logo vi Sandrão, Banana, Cabeção, Bertinho e Veludo sentados na calçada batendo figurinha. Assim que me viram paramentado e com a bola na mão, já começaram a se levantar, sabedores do que estava para acontecer. 

— Timinho? — alguém perguntou. 

E logo começamos no par ou ímpar a escolher os times, quem jogava de camisa e quem tirava, o Bertinho e o Sandrão foram pegar tijolos de construção para marcar o gol e desenhar o campo, e poucos minutos depois já estávamos correndo na rua atrás de uma bola de plástico. 

Eu joguei muito naquele dia, como o Dudu nos tempos de hoje, ou como o Aragonés daqueles tempos. Batia na bola com habilidade, fazia lançamentos longos e certeiros, gol, um atrás do outro, e convencido de que a meia preta potencializava o meu talento, a confiança crescia, e a demonstração de técnica e categoria também. Foi um massacre. O nosso time tinha Dudu com suas meias pretas, como teria chance o outro, que jogava sem camisas? 

É incrível, amigos e amigas, como certas coisas acontecem, como momentos do passado, esquecidos na memória surgem de repente, assim como o Bolero de Ravel, que contei para vocês na quinzena passada. 

Era uma manhã de segunda-feira. Antes de ler o jornal eu peguei meu recém-comprado Vento Vadio, as crônicas de Antônio Maria, pesquisa e organização de Guilherme Tauil, lançado pela Editora Todavia, tido como uma das melhores publicações de 2021, conforme comentário que li outro dia do Alvaro Costa e Silva, na Folha. Não titubeei, e antes de acabar o ano, comprei-o. No dia seguinte, para a minha surpresa, chegava em casa Vento Vadio, bem acompanhado pelos grandes Os Sabiás da Crônica e Diário de um Ano Ruim

Pois nesta segunda-feira sem graça em que escrevo, eu folheava Vento Vadio. Na leitura de Menino de olhar triste, de repente, sem titubeios, a história do menino da meia preta se descortinou suave na mente, o menino bobinho que se alegrava como nunca apenas por ganhar três simplórios pares de meias pretas.

Comentários

Como sempre é um prazer ler sua crônica Sérgio. Adorei a história das meias pretas. Essa alegria com as pequenas coisas das crianças é preciosa, seu texto é uma lembrança para cultivá-la!
Zoraya Cesar disse…
Suas crônicas de memórias são tão sensíveis e tocantes, levinhas e, ainda assim, profundas.
Pois é, quem dera que, adultos, continuássemos a nos encantar com pares de meias pretas.
Albir disse…
Suas crônicas de memória são, frequentemente, nossas crônicas de memória! Nostalgia.
sergio geia disse…
Alfonsina: coisas bobinhas e a gente ficava tão feliz.

Zoraya: quem dera...

Albir: fico contente em saber, Albir.

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