NEVE NEGRA - PARTE 5 >>>> Nádia Coldebella

 A fuga da princesa


"- Anand. Anote. Essa criança agora têm nome. Depois chame a criada. Eu preciso me casar".

 

A princesa Anand crescia e não havia, em todo o reino ou em qualquer outro lugar  mulher, fosse criança, adulta ou velha, presente ou passada, cuja beleza pudesse se comparar à sua. Ninguém. 

A não ser Angèlle. 

Angèlle era envolvida, de algum modo, por uma aura de mistério, que ofuscava a efervescente beleza juvenil da princesa. Quando a feiticeira andava, parecia etérea, um anjo, um ser elemental; Anand, ao seu lado, parecia arrastar-se. A filha era uma criança para o rei, alguém que deveria se submeter ao seu poder sem questionar. Porém, mesmo sendo marido e amante, mesmo tendo sentido o toque de sua pele, este homem tinha pela esposa uma devoção tipica dos adoradores e a tratava como um ser impalpável e muito acima de sua própria humanidade.

Nem a feiticeira nem a princesa, no entanto, pareciam ter conhecimento do que os olhos alheios observavam. Angèlle era mãe dedicada, Anand filha adorada, reconhecida em todo o reino por trazer no coração as qualidades ímpares da rainha Elora. Angèlle assumira a educação da princesa e ensinava-lhe, com maestria. Matemática, Línguas, Química, Física, Astronomia, Biologia, bons modos a mesa, moda e autos cuidados. As ciências conhecidas e as ocultas, porque Angèlle dedicou-se, também, a ensinar-lhe os encantamentos, o macerar das ervas, o preparo das poções, o olhar sobre o tempo, a previsão dos acontecimentos e a observação da natureza. Ensinava o que uma filha deve ser, o que uma princesa deve fazer, o que uma rainha deve escolher. Eleve a voz aqui, Anand. Abaixe o tom ali, Anand. Escute a vibração das notas, Anand. Molhe a pena na tinta, Anand. Cuidado com a grafia, Anand. Olhe nos olhos e sorria, Anand. Estenda a mão, Anand. Mantenha a coluna ereta, Anand. Esmague bem a erva, Anand. Use o pote de barro, Anand. Observe o sol no céu, Anand. E graças a feiticeira, ao completar 15 anos, a princesa cantava como um rouxinol, portava-se como uma rainha, vestia-se como uma imperatriz e era versada no conhecimento dos grandes sábios.


Anand vestira a capa preta com o capuz. A capa havia sido amarrada firmemente pela cintura e pelo pescoço, garantindo que ficasse bem coberta. Os cabelos pretos haviam sido presos em uma trança e depois, enrolados num coque. Ela pegou algumas plantas e amassou numa combuquinha de barro. Um pouco disso, um pouco daquilo - Angèlle ensinara bem - e logo um cheiro estranho saiu da poção. Ela aplicou a mistura nos braços e na nuca. O odor entorpecia um pouco os sentidos e era bem isso o que ela desejava: com certeza, coberta pela capa e pelas sombras e exalando este odor entorpecente, dificilmente seria reconhecida. A parte difícil havia sido driblar os olhos sagazes da madrasta, mas anos de treino em ser uma boa menina a haviam ensinado exatamente como agir. Sim, mamãe; claro, mamãe; com certeza, mamãe; obrigada,mamãe.

Ma-mãe. 

Anand não pode conter uma gargalhada rouca e amarga. Mamãe estava morta e enterrada. 

Ma-drasta.

Ela revisou mentalmente o plano, mas distraiu-se quando o espelho reluziu. A luz da lua incidira sobre ele, espalhando seu amarelado pelo quarto. Um reflexo sombrio cobriu os olhos da princesa e ela lembrou-se, vagamente, de relâmpagos incidindo naquele mesmo espelho, naquele mesmo quarto. Mamãe. A rainha dormira ali. Vivera ali. Parira ali. Amara e morrera ali. E quando Anand teve condições de escolher, foi ali que escolheu ficar. No quarto de sua mãe, a rainha, quarto que era seu por direito. 

A princesa foi até a parede e retirou o espelho de lá. Embrulhou-o com um pano velho e colou-o na bolsa. Conferiu o conteúdo: água, algumas maçãs, o pergaminho e o espelho. Tudo certo. Dirigiu-se à uma parede do lado oposto do quarto e empurrou uma pedra. Depois de um clec, escutou o barulho da roldana e, seguidamente, o de um arrastamento de pedras. A parede abriu-se, revelando um vão secreto, usado outrora para as fugas durante as invasões. 

Um estreito, comprido e descendente corredor, com algumas curvas sinuosas, abria-se a sua frente. Anand acendeu a tocha que estava na parede e calmamente esgueirou-se pela abertura, não sem antes fechar o vão atrás de si. O corredor estendia-se por cerca de duas centenas de metros, circundando o castelo e desembocando em uma abertura escondida por rochas e árvores. Ela seguiu por uma trilha irregular, antiga e pouco usada, por cerca de trinta minutos, chegando a uma campina. O cavalo já estava ali, ela tomara cuidado para trazê-lo a tarde.

Cavalgou até a floresta. A estrada, iluminada pelo luar, não lhe oferecia perigos: o caminho já havia sido feito e refeito duas dezenas de vezes. Era preciso que assim fosse, mas de nada valiam as outras vezes, eram apenas ensaio. 

Não hoje.

Apeou numa clareira. Trinta e seis pedras já estavam dispostas, formando um círculo perfeito. Sobre cada pedra, uma lanterna, que Anand acendeu. A princesa ficou ali na última pedra, por alguns momentos, parada, observando as chamas que cresciam, encolhiam e lançavam sombras fantasmagóricas e irriquietas que maculavam qualquer coisa que estivesse ao seu alcance. 

arte de Ewa Houton




No centro do círculo, havia uma espécie de tablado, trabalhado com pedras brancas, colocadas tão minuciosamente perto uma da outra que pareciam formar um conjunto sólido e liso - não fosse por uma falha aqui e ali que denunciasse. a natureza do arranjo. Ela dirigiu-se bem ao centro da superfície e girou sobre o próprio eixo, a fim de conferir se tudo estava em ordem. Abriu a bolsa e retirou o pergaminho e o espelho, colocando-os no chão.

Sem pressa, retirou o capuz e desamarrou a capa. Retirou-a bem lentamente, revelando um corpo perfeito, muito branco e nu. A capa era forrada por um tecido vermelho, muito macio e agradável ao contato. Anand estendeu-a sobre a superfície de pedras e sentou-se, deixando-se deliciar pelo contraste entre sua pele e a forração vermelha. A visão de si era realmente admirável e ela foi tomada por uma forte excitação que deixou sua face rubra.

Com uma certa urgência, a princesa colocou o espelho aos seus pés, apoiado numa pedra, de forma que ele ficasse num ângulo de noventa graus em relação ao solo. Olhou firmemente para ele enquanto soltava os cabelos negros e longos sobre os ombros de mármore. Sob a luz do luar sua beleza era assombrosa. E ver a si mesma naquela superfície prateada ampliou ainda mais a excitação que sentia. 

Ondas de calor começavam a subir pelo seu corpo e o sentimento de urgência aumentou. Ela tomou o pergaminho e colocou-o sobre a coxa nua. O contato do couro com a pele sensível fez eriçar os pelos de sua nuca e um forte suspiro saiu de sua boca. Um suspiro gelado, que parecia lhe congelar as narinas.

Ela abriu vagarosamente o pergaminho. A madrasta guardava-o com todo o cuidado dentro do livro, mas ela sabia onde o livro estava. E sabia como enganar o anão imbecil que tomava conta dele.

A imagem da madrasta formou-se em seus pensamentos. Angèlle era uma mulher belíssima, Anand reconhecia, mas envelheceria em breve e as rugas levavam embora qualquer encanto. Um sorriso perverso tomou conta de seus lábios, porém logo murchou, quando ela lembrou-se de que nunca ruga nenhuma invadira o rosto da rainha. Ela era perfeita, pensou Anand, cada parte dela é. E à visão de Angèlle, seu corpo estremeceu, levando novas ondas de calor a tomarem conta de seu corpo. Um ódio crescente também passou a apoderar-se dela.

A excitação também estava em sua vós quando tomou o pergaminho e o leu, palavra por palavra, tão vagarosamente quanto havia tirado a roupa. E cada palavra pronunciada era como caricia em seus lábios. Ela sabia o que as palavras fariam com a madrasta e estava disposta a pagar o preço por seu desejo homicida.

Ao fim da leitura, a excitação crescera-se a tal ponto, que a prostara na capa macia. E enquanto remexia-se freneticamente, sentiu seu coração pulsar e crescer no peito. Procurou o espelho e olhando para ele repetiu, de dentes serrados:

- Oh, espelho meu...

E perdeu-se em seus devaneios. Ela não viu a sombra que se aproximava, invisível aos olhos dos mortais. Mas entregou-se totalmente, ansiando pelo que a escuridão lhe traria.

Créditos da imagem: Ewa Hauton, em: https://www.ewahauton.com/ink-on-paper?lightbox=dataItem-j2koamey 

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Leia a história aqui:

Neve Negra - Parte um: A feiticeira

Neve Negra - Parte dois: O nascimento da herdeira

Neve Negra - Parte três: A sombra da rainha morta

Neve Negra - Parte quatro: Coração Empedernido




Comentários

Paulo Barguil disse…
Já vai acabar???
Estou pronto para mais episódios. :-)
Nadia Coldebella disse…

Vou ter que terminar. Tô ficando com medo.🥺
Wow, como sua escrita é envolvente Nadia, você pega a gente pela mão e parece que estamos bem ali, em cada cena. Não vejo a hora de ler o final!
Albir disse…
Ah! Agora você está com medo? E eu, como acha que estou? Continue, Nádia! Prove do próprio veneno! Coragem! Você não gosta de assombrar?
Zoraya Cesar disse…
Acho bom mesmo q termine pra vc começar logo outra tão empolgante quanto! E esse suspense tá acabando com a gente!

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