UMA QUESTÃO CAPILAR >>> Nádia Coldebella

A notícia do terceiro casamento falido do pobre Eliseu se espalhou aos quatro cantos da empresa e virou piada entre clientes e fornecedores. Mas calaram a boca quando viram sua nova namorada. Não sou desses homens machistas, que fica arrancando pedaços de uma mulher com os olhos, mas não tem como negar, Eliseu escolheu certinho. A menina era linda, metade da idade do meu amigo e não tinha medo nenhum de dizer que adorava a carteira do “paizinho”. E tudo bem pra Eliseu.
– Por isso que dá certo, Fernandinho. Tem muita franqueza entre nós!

O dedo podre de Eliseu era conhecido, então ver sua primeira conquista de sucesso motivava até os mais tímidos e desenxabidos. Um desses era Clóvis, mais desenxabido que tímido. Um sujeitinho pra lá de estranho, nem alto nem baixo, mas bem magrelo. Ele tinha um cabelo preto e liso, que parecia meio solto e desconectado da cabeça. Tinha uma cara sempre preocupada que vinha com um tique nervoso: ele dava uma abaixadinha na cabeça e apalpava bem vagarosamente o cocuruto por três vezes, depois descia a mão vagarosamente, alisando a juba com cuidado. Eliseu o tinha contratado porque falava mandarim muito bem. Não sei se é por causa do mandarin, mas o fato é que Clóvis sempre corrigia a pobre da Dona Cotinha, a faxineira, quando ela se preparava para limpar o chão:

– Licença, seu Cróvis.

– Eu já te expliquei, Dona Cota – Ela olhava pra ele com uma cara muito estranha, olhar fixo naquela cabeleira. Ele imediatamente punha a mão sobre o cocuruto e começava a apalpar os fios. Concluído o movimento, fazia um biquinho e falava bem devagar – É Co-ló-vis!

Cotinha limpava o chão bem rapidinho, sem tirar o olho do cabelo desconectado do Co-ló-vis. Parecia vidrada. Era nessa hora que ele se incomodava e bufava, andando pesado em direção do banheiro.

– Eu não entendo esse seu Cróvis, seu Fernandinho. – Ela ficava de pé, um tico de gente, com uma das mãos na cintura e a vassoura na outra. Dona Cotinha, na verdade, se chamava Francisca. Foi Eliseu quem carinhosamente passou a chamá-la de Franciscotinha, fazendo uma referência ao seu tamanhinho, e logo o apelido de Dona Cotinha pegou.- Que homi esquisito, fica me chamando de Cota! 

Ela tinha razão de estar aborrecida, pois Clóvis a chamava de Dona Cota por pura chatice. Ele tinha raiva quando ela ficava de olho fixo em seu cabelo. Era mesmo como ela dizia:

– Uma impricância comigo, seu Fernandinho.

A situação tomou um rumo muito mais sério, no entanto, quando a nova estagiária chegou. Uma moça já de certa idade, bem apessoada, cheia de dotes e carnes, discreta e solteira, que ficaria sob a responsabilidade do meu feliz colega. Ele, embalado pelos feitos recentes do meu amigo Eliseu, passou alguns dias ensaiando, até que estufou o peito e partiu pra cima.

As coisas, porém, não saíram como esperado. A moça bem que tentava disfarçar, educada que era, mas não conseguia tirar os olhos do chumaço capilar preto que despontava do cocoruto de Clóvis. Parecia hipnotizada e era toda sorrisos, mas era impossível qualquer concentração com o tique nervoso que agora atingia as raias do insuportável.

Todo mundo que estava por ali, inclusive a deliciada Dona Cotinha, olhava de soslaio, divertindo-se com a situação vexatória do pobre Clóvis. Ele já tinha se levantado três vezes, vermelho e frustrado, para ir ao banheiro, provavelmente para recompor-se. A pobre moça, coitada, estava em visível pânico, já crente que o estágio tinha ido por água abaixo.

Clóvis, porém, não era desses que desistia facilmente. Seu muso inspirador, Fernandinho, tinha falhado três vezes antes de acertar e, portanto, não era um contratempo que iria tirá-lo do objetivo. Mirou o alvo e armou o bote. Chegou perto da moça, como se nada tivesse acontecido, com uma conversa mole, que ela procurou corresponder, permanecendo sentada e de cabeça baixa. A atitude da estagiária pareceu incomodá-lo ainda mais e ela, percebendo a mudança no tom de voz, elevou os olhos, fixando-os, inevitavelmente, no tosco volume do alto da cabeça do homem. Quatro vezes, no entanto, é demais para qualquer homem, e eu digo isso porque sou homem também. Clóvis bem que tentou segurar, mas não deu:

– Porque, raios, você olha tanto para o meu cabelo?

A moça, de grandes olhos injetados, fixou nos olhos miúdos do Clóvis e soltou com a mais profunda honestidade:

– É que a sua peruca está torta.



Clóvis imediatamente colocou as duas mãos sobre a cabeça, enquanto um “Óhh” ecoava pelo escritório, que desconhecia o segredo capilar do colega. A moça, então, arrematou, numa voz suave, quase melódica:

– Eu acho o senhor uma pessoa muito interessante, seu Clóvis, mas essa peruca tira todo seu charme, porque distrai a gente. Acho que o senhor até pareceria mais jovem sem ela – e arrematou, olhando-o candidamente e piscando o olho três vezes. Ele agora era um homem completamente humilhado e dominado, que permaneceu o resto da semana calado.

Confesso que pensei com meus botões que a moça havia chamado Clóvis de interessante por mera autodefesa. Mas cada panela tem sua tampa e na segunda de manhã tomei ciência do meu ledo engano. Ele chegou sem peruca, dando olhadelas apaixonadas para a estagiária que, de pele reluzente, parecia toda encantada. Soube depois que haviam se entendido no fim de semana.

– Licença, seu Cróvis – disse uma espantada dona Cotinha.Co-ló-vis nem ligou. O tique nervoso tinha sumido. Ele era outro homem. Embevecido, careca e de cara completamente despreocupada.

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Este texto faz parte da série  Crônicas de Fernandinho. 

Leia a outra aqui: Casamentos e cacatua - Crônicas de Fernandinho


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