ÓBVIO >> Carla Dias >>


As pessoas insistem em querer saber: que tristeza é essa? Ele se esquiva, porque houve dias em que tentou explicar, mas não chegou às palavras certas para o entendimento do outro. E então que a tristeza dele, que nem é tristeza de fato, que tem lá a sua coerência, se perdia em uma lista de itens oferecida pelo outro, sobre o que ele não deveria cometer. Os dramas que ele construía relacionados ao que era óbvio. Na tentativa de ajudar, as pessoas se dedicavam a tecer explicações e a exigir dele reações que elas teriam, caso estivessem no lugar dele.

O óbvio é um dos grandes mistérios que o sonda. São poucas as coisas que ele concorda que o óbvio pode definir. O básico é óbvio. O respeito é óbvio. O direito e o dever são óbvios. Ainda assim, não vivemos em luta constante para garantir que o óbvio seja correspondido? O que deixa o óbvio relegado, num canto da sala escura. O que tira dele a leveza do entendimento imediato e o mergulha em um mar de complexidades.

Nada é tão óbvio assim. Nem mesmo ele.

Não é tristeza, não no resumo do significado que costumamos aplicar à palavra. É um desalento arrebatador, que o faz andar mais devagar, perder olhar em horizonte qualquer, emudecer a cada tempo um tanto mais. Como alguns já o alertaram, essa tristeza, que nem é assim tão tristeza, faz com que ele pareça socialmente esquisito, vista-se com desalinho, sorria menos do que os encontros sociais exigem. Houve quem lhe receitasse antidepressivo: meu pai é médico e eu consigo a receita pra você.

Ele acha tudo isso tão curioso. Antes desse esmorecimento colossal, quando sua existência era mais fácil de ser lida, porque estava tudo lá, disponível, ninguém o repreendia pelos seus impropérios. Seus dramas eram reconhecidos como desejos pungentes por mudanças necessárias. Porque as escolhas que ele fez, a forma como vinha lidando com as pessoas, suas buscas o levaram a esse estado vigente: ausência de si. Porque não é tristeza, é desencantamento profundo, de fazer espírito doer e doer e doer. Vem de lugar nenhum, de um amontoado de desejos descartados, sonhos induzidos ao esquecimento, amores vãos, mágoas indisciplinadas. Não reconfigura olhar, mas o torna mais afiado para reconhecer verdades pulsantes, as delatoras da falta de importância que temos diante do óbvio.

Ele sabe que sim, é óbvio que a vida tem suas camadas. Ele tem suas camadas. E que há dias em que não se quer sair da cama, da frente da televisão. Há dias em que o desejo é barulhento, espalhando-se pela percepção dos outros como se fosse música solta no salão. Há quem goste, há quem não.

É óbvio que não se trata de tristeza. Ele queria saber como se explicar melhor, mas lhe falta desenvoltura na oratória. Além do mais, nem todos estão preparados para entender essa fase em que o óbvio desacontece, deixando tudo pulsante, nevrálgico, impróprio. Então, o silêncio reverbera, os olhares se perdem em horizontes imaginados, o corpo se curva e o gosto para se vestir decai consideravelmente. A comida perde o gosto, abraços rareiam e, às vezes, os cabelos também.

Só que não é tristeza. É um desencantamento estrambótico, quase poético, desafiando certezas e reavaliando prioridades. É um acontecimento existencial, um refazer o caminho para se entender como diabos se chegou a esse destino. E diante dele, as tragédias da rotina, aquelas que comungam com atrasos, desventuras, agendas vazias, furtos de emoções e pequenos objetos de afeto. É a colisão entre dor e prazer e a revisão dos termos do acordo entre si e o universo. É quando dentro da gente a vida se descabela, enquanto não conseguimos pronunciar palavras.

É óbvio.

Imagem: A Morning in March © Nikolai Astrup

carladias.com

Comentários

Anônimo disse…
Sempre profunda. Sempre uma boa leitura. Carla Dias. É obvio.

Abraços,
Enio
Zoraya Cesar disse…
Mais um texto irretocável, tristeza profunda e poética e, como sempre, nada óbvio. (e concordo com o comentário do Enio: óbvio, em vc, apenas o deslumnbre de texto)
Carla Dias disse…
Obrigada, Enio! Abraço!

Zoraya, Zoraya... Obrigada. Beijo.

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