INSTÁVEL >> Carla Dias >>


Foi elaborado com cuidado, desenvolvido com paciência. Está pronto, implementado, trabalhando como se deve. É possível se perceber os resultados positivos. As pessoas se sentem mais animadas, dedicam-se com mais ousadia, o que sempre respinga no departamento criativo e lota a pequena área comum, em momentos de café e conversa fiada.

Porém, é a sua criatividade que anda trabalhando meio na borderline.  Entediou-se durante a reunião de replanejamento, porque tudo que começa com “re” anda abusando da sua paciência. Veja o recomeço... Quem mesmo quer passar a vida a celebrá-lo? Recomeço é bom quando é primeiro. Experimente o segundo e mantenha o pique. Trabalhe duro e dedicadamente na terceira versão.

Depois conte aos amigos como foi recomeçar pela centésima vez, com o mesmo tom de esperança da primeira na voz.

Fez essa lista para pontuar seus recomeços. Está no vigésimo segundo. No anterior, desapegou-se dos mistérios do espírito. Amanheceu nesse a flertar com as viradas da ciência. Abandonou meios-termos na décima sétima vez. Diante da eminente falha da vigente, planeja retomá-los. Nunca foi bom em extremos, gosta de comida agridoce. O que estava pensando ao vestir o casaco separatista?

Logo no começo da reunião de reestruturação, desliza a caneta sobre o papel em branco reciclado. Pensa na natureza das árvores. Então, na natureza das coisas. Então na natureza de si, esse ser desconexo, encaixado em um cenário de reformulações e recriações, um círculo vicioso de repetições. Para distrair a mente, evitando palavras decoradas há quatrocentas reuniões, pensa em pele, olhares, toques e a sinfonia de deleites que planeja para o próximo recomeço. Chega de solidão arrecadada para ser trocada pela sabedoria. O que a sabedoria fez até aqui? Como sabedoria pode vingar em terreno árido para sentimento? Que sabedoria é essa que descarta, em vez de mergulhar?

Nada de recato, que os beijos acontecerão na impulsividade do desejo, na intimidade do afeto. Porque é hora de recrutar novos integrantes para esse comboio de sonhadores de sonhos recolocados. Há vezes em que esses sonhos se despem da originalidade e aceitam, empilhados em normas, tornarem-se outros, apesar de a versão original ser possível.

Essa coisa de ter de caber em algum lugar para ser.

Segue-se o recadastramento de indivíduos desconhecidos, conjugados pelos seus números do CPF. Assim, será decidido quem sim e quem não. Regado a silêncio, o momento é arremessado ao mundo como projeto de sucesso. Não vê muito sucesso nisso, não. Não enxerga a si encarando outro recomeço a recadastrar mentiras distribuídas aos que ainda cultivam alguma esperança por serem reconhecidos.

Debruça-se na máquina de xerox, que cospe cópias de um mesmo relatório sobre reservas de bilhetes aéreos. Reveza-se entre labor e horror ao pensar que recomeçará mais uma vez. Dirão que é algo bonito, honrado, repleto de perspectivas. Só consegue pensar que recomeço é coisa que se engole uma vez só. Depois, resta somente respirar e se render à certeza de que a vida é instável.

Demorou cem recomeços para entender isso.

Deita-se no chão, aos pés da máquina de xerox. Os colegas relatam o ocorrido ao chefe do departamento de relações inteligentes, mas não antes de tirarem uma foto para espalhá-la pelas redes sociais. Apinham-se indivíduos na sala do café.

Pensa que o único “re” que lhe pode salvar é o de respirar. Respira fundo, levanta-se e, instável que só, decide finalizar em vez de recomeçar.

Imagem © Max Ernst

carladias.com

Comentários

Analu Faria disse…
Seu texto me dá a sensação de que a lógica está cedendo ao caos, de uma forma tão lírica que me espanta. Talvez por isso seja tão bom lê-la!
Carla Dias disse…
Analu, fico sempre feliz pela sua leitura. Obrigada! Beijo.

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