CAFÉ SOLIDÃO >> Carla Dias >>



Para Carol, quem sabe inspirar com o olhar.


Ela se levanta, morosamente. Vê-se que preferia permanecer onde estava, cobertor enroupando a cabeça. Mantém os olhos fechados, como se as pálpebras pesassem mil receios. O espectador provavelmente deve se perguntar, inspirado pela frouxidão da cena: o que se passa na cabeça dela?

Não?

Provavelmente, não.

É que algo mais dinâmico acontece para além dela, enquadrado por uma janela escancarada. Não é o cinza do dia de garoa. Não é a imagem do frio que esse cinza realça.

Vê-se bem o cenário: janela que dá para janela. A dela se encaixa no escancaro da janela da vizinha, feito um túnel invisível atravessando a estreita rua.

A vizinha, diferente dela, tem uma energia contagiante. Chacoalha os lençóis, botando ordem na cama de onde se levantou, assim, em um pulo. Os cabelos dela esvoaçam em sintonia com os panos. Um diretor de comercial para televisão se orgulharia da cena. Seria fácil trabalhar com aquela personagem, a fim de vender o produto que fosse. Funcionaria. E se fosse produto com perfume, sério, daria para senti-lo.

Primeiro plano, ela.

O espectador já se aborrece, porque no segundo plano a cena corre muito mais animada. Ainda assim, não há como desviar completamente o olhar. A personagem do apartamento do outro lado da rua cantarola uma canção qualquer e sorri largo. Eu disse que ela venderia o que fosse. Sorrisos vendem bem. Estão sempre em alta no mercado. Há quem compre até infelicidade ao se permitir enredar por sorrisos de propaganda.

Ela sai de cena por pouco mais de minuto. Enquanto o espectador se deleita com a vivacidade da cena do segundo plano, não consegue evitar de escutar os sons e imaginar a do primeiro plano se esforçando para lavar o rosto e se encarar no espelho. Eu sei, clichê de cena de cinema, de novela, de série. Mas não se esqueçam que clichês são essenciais, porque resumem a importância da nossa insignificância diante do mundo.

Mas não irei filosofar sobre nossas mazelas, porque o episódio continua.

Não queria revelar, condutora de cenas que sou, mas não me resta muito a fazer. Enquanto você, caro espectador, deleita-se com a vizinha do outro lado da rua, já completamente envolvido com a alegria dela - que agora dança uma música que você não consegue escutar, mas que já se tornou a sua preferida para momentos de alegria -, ela volta para cama.

Sim, ela volta para a cama e se cobre, até a cabeça. Seu quarto, esse espaço que parece concentrar a densa melancolia desse dia cinza de garoa e frio – que fique claro que essa condutora de cenas aqui aprecia deveras dias cinzas de garoa e frios – é um cenário impecável para o desalento da protagonista dessa história.

A música vem...

Sim, tinha de ser arrastada e interpretada no violoncelo.

Com essa trilha sonora, fica um tanto incômodo observar a cena do segundo plano – a vizinha continua sua dança, com movimentos aeróbicos contemporâneos -, então que o olhar do espectador pousa menos distraído sobre esse corpo coberto, dos pés à cabeça, jazendo inerte em uma cama.

O que há nessa cena capaz de seduzir olhar?

Talvez o momento em que ela estica o braço, livrando o tal do cobertor pesado. Espreguiça-se demoradamente e fica impossível não perceber como seu corpo parece ganhar movimento. Você já entendeu que o tempo dela não é próprio do ritmo necessário para comerciais para televisão que vendem produtos com sorrisos fabricados, certo? Entendeu que o dia é cinza de garoa e frio e ela gosta disso. Que ao colocar os pés descalços no chão supostamente gelado, é você quem se arrepia.

Então, que ela olha diretamente para você, como se você fosse o espelho que você a imaginou encarar, ainda há pouco. E não há nada de clichê nesse olhar. Ela se levanta, sai de cena. Silêncio total. Carregado.

A moça da cena do segundo plano continua se descabelando de dançar. Eu a invejo. Sim, eu mesma...  A condutora de cenas. Isso não significa que eu comprei o que ela vendia. Sim, vendia. Porque, observe de perto: tudo parou na cena do segundo plano. Percebe? A música imaginada já era. A personagem, sentada em sua cama arrumada, agora mais desolada do que...

Um momento. Aguarde...  Aguarde...

Ela não colocou uma roupa especial para a cena. Continuou vestida naquela longa camiseta preta. Sabe de onde vem? De uma história de amor antiga, que, apesar de não ter vingado, promoveu significativas catarses.

Não penteou os cabelos, não se preparou para a cena.

Ainda na morosidade do movimento, ela coloca uma cadeira no meio do quarto e sai de cena. Volta a música do violoncelo. Eu adoro o som do violoncelo. Sim, eu mesma...  A condutora de cenas.

Alguns segundos de inquietação para o espectador, então ela está volta. Veja como seu corpo, ainda há pouco prostrado, agora se movimenta diferente. Há beleza nos gestos dela. Eu sei que é essa visão que os distrai, meu caro espectador, a ponto de não permitir que você perceba o que ela segura.
Até ser tarde demais.

Close-up.

O som do violoncelo aumenta. A música melancólica, mas tão bonita, leva o espectador a um passeio interior, daqueles de provocar suspiro.

Plano geral.

Surpreenda-se com a cena, porque ela é divina, a seu modo.

Ela tomou a música para si, tocando o violoncelo, apropriando-se dos significados distribuídos nesse dia cinza de garoa e frio. Não é mais trilha sonora de cena. É música em cena.

Ela que sorri, agora, no ponto alto dessa música. Não é sorriso fabricado. É sorriso redenção.

Não se preocupe, porque o segundo plano vai sempre fazer parte da cena. Não há personagem a ser desprezado nesse Café Solidão que, às vezes, é a vida da gente.

The end.

Imagem © Carolina Bicudo



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