UMA BELA VISTA DA CIDADE >> Carla Dias >>



Uma bela vista da cidade anda cada vez mais rara. Para ele, vista é importante, que nunca entendeu essa de olhar pela janela e assistir à vida do outro, sem autorização do próprio.

Enquanto viaja por vinte andares, até chegar ao do trabalho, é obrigado a saber da vida alheia de várias formas: o ascensorista atualizando as secretárias sobre as gafes dos patrões, as secretárias desvelando intimidades em conversas pelo telefone, os silenciosos que são ótimos em demonstrar, fisicamente, se a mensagem que receberam trazia boa ou má notícia.

Ele, particularmente, sente-se exaurido pela competência tecnológica em ampliar as formas de as pessoas estabelecerem uma conexão entre si, quase sempre fragilizada ou iludida. Porque ele não entende o ascensorista mandar mensagem de voz para a secretária cinco segundos depois de ela sair do elevador, somente para dizer que esqueceu um detalhe importante sobre o Sr. Advogado que deu o maior fora em pleno fórum. O ascensorista esqueceu nada, ele tem certeza. O que ele quer é perpetuar essa linha virtual para se deleitar com a presença dela no final do horário comercial, acompanhando-a até seu carro, sonhando em um dia acompanhá-la até sua cama. Homem bem-apessoado, de conversa fluente, claramente de tino afiado, certamente teria maneira mais elegante de flertar com a secretária. Uma pena que eles se escorem em rótulos e mensagens que nublam a real natureza do que sentem.

Seu escritório tem bela vista para a cidade, com o mar aos pés do horizonte. Não fosse assim, ele não conseguiria contabilizar quase trinta anos atendendo no mesmo lugar. A profissão o tornou curioso incurável pela história do outro, mas não a contada no diariamente, encharcada de diplomacia ou provocações que são, de fato, um mecanismo de proteção.

A história que, às vezes, chega a ele crua, nua, desarraigada de véus, infértil de pudores, mergulhada com a mesma intensidade na alegria e na tristeza. Quando isso acontece, quando a pessoa se permite tal vulnerabilidade em sua presença, é como se ele assistisse a um bom filme. Veja bem, não há impolidez nesta declaração. A psicologia tem sido a sua vida há quase três décadas. Além do respeito pela profissão, há o respeito pelas pessoas que recebe em seu consultório. O que ele não pode negar - e talvez seu próprio psicólogo lhe sugerisse que tomasse tento caso ele lhe confidenciasse verdades irrestritas -, é que ao lhe impressionar, como um bom filme o faz, a história de vida do outro alimenta espaços vazios da sua alma. Então, lembra-se deles ao perder o olhar na bela vista enquadrada pela janela de sua casa, após um dia de lida, saindo da área profissional e descambando na humana.

Que no dentro, a gente mistura tudo mesmo. A grande questão está em como lidamos com o resultado disso.

15:00 e ele abre a porta para ela. Mesmo com a agenda cheia, deu um jeito de encaixá-la, porque um dos colegas lhe pediu que fizesse a gentileza. Ele pede que ela entre, mas sem prestar atenção na mulher. Somente quando se senta à frente dela, depois de se posicionar para iniciar a conversa, ele se dá conta de que se trata da moça do ascensorista.

Soubesse o ascensorista sobre a moça - como ele agora sabe, já que ela é das que despem a alma sem pensar duas vezes a respeito -, talvez não se empolgasse tanto com tal desejo e economizasse nos aplicativos. Cabe a ela, de forma simples e objetiva, o que dizia a sua mãe e outros milhares de mães por aí: não julgue pela embalagem.

Enquanto a bela secretaria tece um monólogo sobre seus desejos, inclusive o de trocar de emprego “asap”, ele observa a cidade pela grande janela do consultório. O que seria sem uma bela vista da cidade?

Nada, nadica, nem uma palavrinha sobre o flerte em dias úteis com o ascensorista. É sem mencioná-lo que ela insinua que ainda bem que é bonita e esperta. Assim, dona de tais predicados, consegue ficar por dentro de tudo o que acontece no prédio e se sente segura, já que sempre tem companhia para levá-la até seu carro, porque aquela garagem lhe dá arrepios quando vazia.

Vazia feito a moça-secretária.

Tem de assumir, para si, que pouco escutou do que ela disse. Não que a esteja definindo oca, tomando partido do ascensorista, definindo quão raso é o espírito da moça-secretária. Ela não tem culpa de ele se apegar ferrenhamente aos melhores filmes, aqueles de enredos cultivados por dramas e humor, tragicomédias rendidas por esperança teimosa de que amanhã tudo vai melhorar, mesmo quando há provas suficientes de que isso não tem como acontecer. A culpa é dele, que se desligou dela minutos depois de ela responder à pergunta sobre o motivo de estar ali, de precisar ver um especialista com tal urgência. A moça-secretária, envaidecida pela sagacidade que, equivocadamente, julga ter, disse que precisava tomar uma decisão importantíssima, que se revelou completamente vaga e até um tanto ridícula, já que ela mesma respondia às questões no rastro do auto-questionamento. Ela saiu de lá agradecendo a ele pela grande ajuda, em decisão da qual ele nem sabe qual foi a escolha, reverberando o excelente trabalho que ele fez.

Talvez ele apenas tenha envelhecido. Depois de tantas histórias dignas de épicos do cinema europeu, passou a atentar aos enredos que parecem simples, mas enganam na sua complexidade, como o do ascensorista e da moça-secretária. Seria uma simples história sobre alguém se aproveitando do afeto de outro alguém, não tivesse ele, renomado psicólogo - de agenda sempre cheia, mesmo depois de quase trinta nos de profissão -, botado reparo neles.

Desde a consulta da moça-secretária, todas as manhãs ele se conecta imediatamente à tristeza do ascensorista, já logo no térreo, que o tal ficou sem o seu objeto de apreço, já que ela – que o ascensorista não sabe, mas não passa de vaso vazio – foi embora com o produtor de eventos do décimo quinto andar. Queria ser cantora, então investiu no amante mais competente na área.

Porém, quem sabe seja uma questão de momento, porque pensando no começo de sua carreira, talvez aquele ele convidasse o ascensorista para uma cerveja para aconselhar o pobre a arrumar outra moça para amar. Que o mundo é cheio de amor e de moças. Hoje, escravo de uma boa vista da cidade, único membro de uma família que acabará nele e completamente à vontade com a solidão, ele se debruça na janela e lamenta pelo ascensorista, acreditando que ele ainda conhecerá muitos vasos iguais à moça-secretária, até compreender que a única forma real de conexão com outro ser humano é conhecê-lo, apesar das máscaras, além da tecnologia e definitivamente com muita conversa.

Assim, a escolha feita será a certa, mesmo que pareça inviável para os outros, e ainda que ela seja somente uma bela vista da cidade e uma vasta coleção de filmes raros.

Imagem © Inês Mesquita

carladias.com


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