O DIFERENTE >> Carla Dias >>


Sempre foi uma pessoa lógica e organizada com as coisas da vida. Até sentimento incômodo tem sua gavetinha certa onde ser arquivado, um espaço dentro dele que lhe garante deter os obstáculos provocados pelo arrebatamento oriundo das emoções.

Considera-se pessoa normal, com uma vida decente, que lida de forma eficaz com o pouco dinheiro que ganha. Um sobrevivente de uma realidade nada enfeitada. Gaba-se de ser capaz de enxergar o óbvio sem fantasiar a respeito dele, somente para deixá-lo mais palatável.

Uma das coisas que o incomodam profundamente é quando uma pessoa diz que acordou diferente. Ele não consegue entender isso. Diferente como? Diferente por quê? A resposta nunca o convence, ao contrário, faz com que desacredite com mais vigor tal declaração.

Não pensem que ele é rígido a tal ponto de nunca se permitir refletir sobre o que difere do seu pensamento, da sua crença. Ainda semana passada, ele foi com um dos colegas de trabalho a uma cartomante. Ele não tem amigos. Acredita que colegas o tornam uma pessoa mais eficiente em relação à vida, pois demandam menos tempo e menos esforço emocional. Então, a cartomante lhe disse coisas absurdas, e ainda cobrou caro por isso, arruinando seu orçamento de abril e maio. O colega saiu de lá animadíssimo, que a boa sorte escancarada nas cartas garantia que ele encontraria a Senhora Felicidade. No dia seguinte, o tal colega chegou para trabalhar anunciando para todos que acordara diferente.

Diferente?!

Ele gosta de música, de boa música. Mas este é um segredo que mantém bem guardado, que por conta da mania geral de se ligar o gosto à agenda do indivíduo, ele prefere evitar os convites dos colegas para ir a shows. A música para ele é a cortesã dos seus sentidos. O único deslumbramento no qual se permite aprofundar.

Mas então a ironia...

De cara com o espelho, ele observa a si, porém não se reconhece. A feição é a mesma, a cicatriz adquirida na infância está lá, na sua testa. Vestiu a sua roupa de quarta-feira, penteou-se com os movimentos de sempre, tomou uma xícara de café, respeitando o ritual. Mudou nada, ainda assim...

A agonia assume o controle do espírito dele. Diferente como? Diferente por quê? Para quem nunca se deu ao desfrute de espiar mistérios, ele se joga ao questionamento irrestrito. Acha que a cartomante rogou praga nele, que os santos para os quais a mãe reza – pedindo que o filho tome tento e arrume casamento, que ela não quer morrer antes de ter ao menos três netos – decidiram escravizá-lo com benevolência indigesta. Está certo de que seu chefe interferiu na sua energia de tanto malquerer sua eficiência.

Sai de casa ruminando incertezas. Pergunta ao universo, em alto e bom som – assustando os transeuntes - por que vitimá-lo dessa forma, arrancando-lhe o direito de continuar a ser o de sempre. O de sempre não é ruim, mas previsível, raramente dá problemas.

Obviamente, no dia em que é o de ele acordar diferente, o universo está irredutivelmente calado.

Nunca foi de caminhar, mas já se passaram horas, e ele ainda a perambular pela cidade. Nunca foi de prestar atenção ao entorno, matar curiosidade com o olhar sobre a aparência daqueles que passam por ele, ou das janelas abertas, dos cenários diversos que povoam um lugar. Só que hoje ele acordou diferente e não sabe o que fazer com isso. Ainda acha que tem a ver com feitiçaria, porque não há equação que explique esse resultado.

No final da tarde - desse que é primeiro dia útil em que não bate cartão, em vinte e três anos de trabalho -, ele se sente exausto. Senta-se no meio-fio e assiste a cidade se esvaziar, aos poucos, logo após a correria dos que querem mais é chegar em casa e tirar os sapatos, abraçar os filhos, cortejar amante, esbaldar-se em solidão.

Antes de o sol partir de vez, ele lança sobre a cidade uma luz-despedida, que embeleza cenário árido, que evoca contemplação. Nesse momento, ele compreende que não somente caiu na armadilha do destino, ao qual nunca deu muito crédito, até agora. Porque hoje ele não apenas acordou diferente, ele acordou curioso a respeito das diferenças. Elas que garantem à vida nuances, tons.

Bem que a cartomante disse...

Foto © Carlos Eduardo Drexler

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