SILÊNCIO >> Sergio Geia

 


Hoje reencontrei você, amigo. Há quanto tempo, hein? Tudo bem, mais por minha culpa que sua. Essas velhas manias do mundo moderno que afastam os amigos de verdade. Não, querido, eu não pensei no Facebook. Aliás, honestamente? Tenho minhas dúvidas se ele afasta ou aproxima. Acho que aproxima, desde que a virtualidade seja uma ponte.

Moro aqui faz seis meses. Gostou? Tive a opção de alugar um no segundo andar, abençoado pelo sol da manhã, ou esse aqui, triturado pelo sol da tarde. As crianças palpitaram e eu fiquei com esse. Se bem que a vista daqui é muito mais bonita. Olha lá: veja a igreja, a Praça Santa Teresinha, o prédio do relógio, a Serra da Mantiqueira. Sem esquecer, claro, do McDonald’s ali, de O Mandachuva, do Fritz.

Mas que domingo chuvoso, não? Quando você bateu na porta eu ouvia bem lá no fundo o som de uma criançada brincando. Tomei banho, recolhi do travesseiro “Esse tal Lucas”, do Cortazer, enchi uma taça de vinho, um recipiente com amendoins, e me pus a ler ao som da gurizada, recebendo as fragrâncias do perfume da infância que me fez ir até a minha antiga casa na Desembargador, à calçada da Domingos Cordeiro Gil, às brincadeiras noturnas numa avenida que produzia pivetes aos montes.

Até então, aqui, não tinha exercitado esse prazeroso hábito de ler ouvindo o barulho da chuva, o som de crianças brincando (na chuva? Sei lá), saboreando um tinto português a cada intervalo que me impunha, quando pulava de uma crônica a outra. E foi lendo Cortazer que meus olhos pescaram cada preciosidade, amigo, que se fosse na cama, no preâmbulo do sono, não conseguiria. Veja essa: o campo, esse lugar onde os frangos passeiam crus?, olha que maravilha! Ou essa: uma paisagem, um passeio no bosque, um mergulho numa cachoeira, um caminho entre as pedras só podem nos preencher esteticamente se temos a garantia do regresso à casa ou ao hotel, ao banho lustral, o jantar e o vinho, a conversa à mesa, o livro ou os papéis, o erotismo que tudo resume e recomeça.

E tudo isso só foi possível com a sua chegada. Está certo que no dia a dia eu te esqueço e ponho a Roberta Sá, o Nando, a Céu, que se revezam no meu aparelho a cada semana, até que uma imagem tosca na telinha estrague tudo. Prefiro não. Talvez eu não consiga exercer o direito de pensar e decidir. Simplesmente faço. Pois nesse domingo resolvi fazer diferente. Deixei esses amigos fantásticos de lado, dei à luz o preto da telinha, pra bater um papo sereno com você, tomando um tinto português, comendo um amendoenzinho. Bater papo, não, isso é força de expressão. Na verdade eu só ouvi. Pois quando você chega, eu consigo escutar o que vem de dentro.

 

Ilustração: Brodowski, 1942, Cândido Portinari 

Comentários

Graça Pelogia disse…
Linda crônica! Me identifiquei com o seu momento. Perfeito quando disse que bateu um papo sereno. O silêncio é generoso. Traz serenidade, quando damos espaço a ele.

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