AO VIVO >> Eduardo Loureiro Jr.

Autor não identificado. Fonte: http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendID=49785668Tem coisas que é melhor ao vivo. Tomar sorvete, por exemplo. Não deve ser bom tomar sorvete no passado. A lembrança de tomar sorvete, mesmo que muito prazerosa, perde para uma nova oportunidade de meter os lábios no frio ardor de um açaí com menta ou de um tapioca com milho verde. O mesmo vale para tudo que é alimentação. Vá lá que um Proust da vida consegue tirar leite de pedra, quer dizer, leite de madeleine, mas é coisa para poucos: aqueles que vivem mais na imaginação do que no corpo.

Já outras coisas parecem estranhas no aqui e no agora: literatura, por exemplo. Todos os dias eu pego um ou dois ou três livros para ler e não fico pensando "e se eu estivesse do lado do autor na hora em que ele estivesse escrevendo?" Talvez eu nem tivesse paciência: "Vamos lá, cara, escreve logo, não tenho todo o tempo do mundo", "o quê?! Você vai ao banheiro?! Mas justo agora, na melhor parte do livro", "Não acredito, você voltou do banheiro mas nem lavou as mãos e vai meter esses dedinhos sujos no teclado?"... É, acho que nem minha admiração por Fernando Pessoa resistiria a esse choque de realidade.

Então o que acontece quando a gente faz ao vivo uma coisa que não deveria ser ao vivo? Ou, por outro lado, o que acontece quando a gente usufrui posteriormente de uma coisa que deveria ter sido desfrutada no presente? Como tomar um sorvete sem ser ao vivo? Como fazer sexo sem ser no calor deste momento? Como abraçar o filho ou a sobrinha em outro tempo que não o agora? Ah, o tempo, esse assunto intrometido...

E se essa própria oposição for uma ilusão? E se não houver coisas que ficam melhor agora ou no passado? E se não houver diferença entre o sorvete que se toma com a boca e o sorvete que se lembra ter tomado — com a memória? E se além desses dois sorvetes — que são um único — ainda acrescentarmos um terceiro sorvete, o sorvete futuro que continuamente nos chama para prolongar a experiência, para vivermos um novo presente? Então em toda a nossa vida tomaríamos um único grande e variado sorvete, pintado com diversas cores e feito de múltiplos sabores.

Com a literatura, algo parecido pode acontecer. Este texto, escrito no presente e compartilhado com algumas pessoas capazes de se conectar por meio da internet, é também o tempo futuro do texto que foi anunciado há alguns dias, e é o passado do texto que estará disponível para futuros leitores. Para os que o lerão no futuro, será um texto comum, feito qualquer outro texto. Ou não. Eles também podem imaginar que o texto que lêem foi escrito um dia, e que houve pessoas assistindo à sua tecitura. Eles ainda podem unificar os tempos: o passado da escritura, o presente da leitura e o futuro da possibilidade de ver um novo texto sendo escrito ao vivo. Para os que lêem agora, letra por letra, fica talvez a sensação de que o passado não existe. Mas é estranho supor a sensação dos que estão lendo agora quando seria muito mais simples perguntar diretamente a eles o que eles estão sentindo... O que vocês sentem, tão caladinhos que não digitam nada na janela de chat?

É, o escritor não está pronto. Ele é o Mágico de Oz: parece grandioso, mas é um anãozinho oculto em uma engrenagem de ilusão. O truque do escritor baseia-se justamente nisso: na certeza de que o leitor chegará com horas, dias, anos de atraso. O escritor chega primeiro e arma o cenário, o palco da fantasia; ele tem o controle. Ao vivo, não. Ao vivo, o escritor dá tempo ao leitor quando pára pra pensar na continuidade do texto. E, nesse tempo, o leitor pensa e imagina soluções literárias mais felizes do que aquelas que o escritor conseguirá efetivamente concretizar.

A leitura a posteriori parece pronta, inevitável. A escrita ao vivo é uma tempestade de idéias, e todos se acham no direito — e têm realmente o direito — de pensar em melhores palavras, frases e parágrafos do que aqueles que o escritor realizou.

Mas os começos são mesmo assim — tímidos, desajeitados —, feito um novo sabor de sorvete que nos faz produzir caretas, feito o sexo de novos amantes que pede ajustes, feito o abraço — ainda com certos pudores — em um novo amigo.

Talvez um dia escrever ao vivo seja o natural, e a leitura posterior seja apenas um vício de memória. Talvez um dia, ainda um pouco mais além, o pensamento seja ao vivo e possamos todos ler os pensamentos uns dos outros: literatura feita de vento para a qual a gente pode treinar adivinhando o formato das nuvens. Ao vivo, claro. E, de preferência, ao ar livre. Mania besta essa da literatura de ser produzida em ambientes fechados.

P.S. — Este texto foi escrito ao vivo entre 10 e 11h de domingo, 15 de junho de 2008. O autor agradece a todos que compareceram online e partilharam com ele essa experiência.

Comentários

Kelly Martins disse…
oiiiiiii
amei a cronica ao vivo...
pena q a janelinha do chat n abriu mais...
o texto ficou no melhor nível...amei!
obrigada E.Loureiro por mas essa contribuição
bjus
Anônimo disse…
Eduardo!
A experiência de participar da sua crônica em tempo real foi única! Obrigada por ter me proporcionado esta emoção! E, quanto à minha sensação de estar caladinha na janela do chat era de emoção e de tensão por você. A situação era semelhante a um torcedor num jogo de xadrez.
Beijo
Anônimo disse…
Edu,
Foi uma delícia estar acompanhando você letra por letra. Além de criativo e talentoso, você é corajoso. Fiquei caladinha na janela do chat para não perder nenhuma letra em tempo real. A crônica, como sempre, ficou ótima.
Beijo
Anônimo disse…
Ihhh! Meu comentário entrou como anônimo.Beijo
Anônimo disse…
Ops! Perdi essa crônica ao vivo e em tempo real?!
É perdi. Estava desinformada. Ficou muito interessante.

Beijo de uma conhecida
Kelly, teve gosto de boa aula. Deu pra matar saudades. :)

Marisa, se eu estava jogando comigo mesmo, você estava torcendo por quem? :)

Linda, foi mais fácil sabendo que você estava do outro lado. :)

Anônima conhecida, você terá outras oportunidades. :)
Carla Dias disse…
Infelizmente, eu não tive como acompanhar o nascimento dessa crônica, mas vou me preparar para a próxima.
E achei muito bacana o resultado, porque o texto é questionador do tempo das sensações; sobre como as esticamos, chegando mesmo a pensar que elas nos chegam no aqui e agora... Ao vivo.
Anônimo disse…
Oi Junoca,
Perdi essa...:( Mas cada vez mais admiro sua coragem, inspiração e criatividade. Não me canso de dizer que quando crescer quero ser igual a você :) Beijo e saudades,
Tia Monca

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