Salomé >> Alfonsina Salomão
Pensava nisso enquanto observava a brasa do cigarro. Gostava do barulhinho que fazia ao puxar o objeto. Depois ficava olhando a fumaça deixar sua boca e dançar nos ares, livre, etérea. Apreciava estas qualidades, esperava voltar a tê-las um dia. O cigarro tinha vindo com o divórcio. Sentia-se um pouco patética por começar a fumar naquela idade, quando os amigos se felicitavam por terem conseguido largar o vício. Mas este sentimento era pequeno se comparado ao alívio que o gesto trazia, a tontura da baforada e o relaxar dos músculos que a faziam esquecer as chatices cotidianas. Enfim aprendera a conceder uma pausa a si mesma. A não fazer absolutamente nada. “Os não fumantes jamais conhecerão esta sensação”, considerava. Pois ninguém pegava alguns minutos do dia para simplesmente ficar mirando o horizonte. Até meditar requeria mais esforços do quê fumar, já que exigia preparação e concentração.
Salomé, que durante anos tivera uma prática regular de meditação, não conseguia mais ficar sentada no chão, imóvel, prestando atenção no espaço entre a inspiração e a expiração. Jamais admitiria, mas uma parte de si sentia que havia sido traída. Que, se ficara tanto tempo num casamento ruim, foi porque todos os dias conseguia encontrar paciência e contentamento na prática da yoga. Era como se todos seus esforços para ser uma pessoa serena, um ser humano evoluído, a houvessem anestesiado, fazendo-a suportar o inaceitável.
“Teria sido melhor se tivesse feito como todo mundo...s bebido, fumado e mandado tudo pros ares na hora certa”, concluía, amarga. Mas antes tarde do quê nunca. Agora se entregava aos maus hábitos com prazer, redescobria as delícias do chacra básico. “A iluminação ficará para a próxima existência”, deixou escapar em voz alta enquanto esmagava o toco de cigarro no cinzeiro, antes de pôr os sapatos e sair para mais uma noitada.
Comentários
A anestesia é ótima, mas nos impede de reagir.