ADOLESCÊNCIA << SORAYA JORDÃO


 

Recentemente, assisti na Netflix à série Adolescência. A história é perturbadora, embora mais frequente do que imaginamos. A trama é muito bem apresentada, tanto no âmbito do universo que conhecemos, da vida concreta, da mesmice e graça dos dias comuns, quanto na exposição de um mundo paralelo, virtual, desconhecido em sua dimensão para a maioria de nós, porém, real e palpável para muitos dos nossos jovens.

A família, protagonista da história, mostra-se tão próxima, tão parecida com as nossas famílias que somos tragados para dentro do enredo e mastigados pelo medo do estranho familiar. Não tem como assistir à série sem se perguntar: tenho olhado para a realidade da minha casa? Dialogo, participo, percebo os meus? Somos próximos e não somos íntimos? Qual a dimensão da solidão de cada um de nós? 

São várias as possibilidades de questionamento e reflexão. Eu escolhi fazer um recorte que, não necessariamente, aborda o ponto focal ou o aspecto mais valioso da trama, mas considero fundamental sua apreciação para elaboração da experiência enquanto telespectadora e vivente na interseção dos mundos real e virtual. 

Nas primeiras cenas já tomamos ciência do ocorrido: o que aconteceu, como aconteceu, quando aconteceu e quem são os envolvidos. O grande mistério é o porquê. Aqui surge meu desassossego. Ainda que a questão seja a descoberta do motivo, insiste em mim a esperança de uma reviravolta que mude o rumo do incontestável. Por quê? 

Está tudo ali, exposto, claro, comprovado. Qual a dificuldade de enxergar a realidade? Contra fatos não há argumentos. Passei dias me indagando sobre tamanha ingenuidade. Por fim, concluí que meu erro foi acreditar nas palavras mais do que nas atitudes, nos gestos, nos sinais do cotidiano. 

Aliás, nenhuma novidade nisso. Toda decepção é fruto de um ponto cego, de uma necessidade de vestir o fato de acordo com o nosso gosto, nossos anseios.

Quantos silêncios adoecidos de ódio, quantas dores profundas vivenciadas nas salas de aula, nas casas, nas relações são emudecidas nos quartos de portas fechadas, nas telas, nos fóruns de internet, nos games? 

Talvez a solução dependa de nos assumirmos tolos entendendo, de uma vez por todas, que não temos controle sobre as coisas, mas devemos estar próximos, disponíveis e profundamente atentos.

Comentários

Ana Raja disse…
Belo texto! Quantas mensagens claras mostradas nessa série e quantas camadas que precisamos urgentemente enxergar.
Anônimo disse…
A série é mesmo impactante e tem várias camadas. Bem que você poderia fazer uma série de crônicas abordando essas diferentes facetas da mesma série. Que tal?
Anônimo disse…
que cronica foda #asmei
Anônimo disse…
A série flerta com documentário e, creio eu, ganharia em dramaticidade se tivesse uma estrutura mais aristotélica e menos joyceana. E tem aqueles planos-sequência que foram muito elogiados pela crítica, mas acentuam o tom de docudrama. Gostei mesmo assim. Ótimo texto. André Ferrer aqui.
Zoraya Cesar disse…
Pelo q vc falou, essa série é muito mais q 'apenas' sobre adolescentes. é sobre toda uma estrutura social apodrecida que perturbadoramente se enraíza nas famílias como se fosse normal, e se espalha por todos os cantos. Agora vou ver.
Nadia Coldebella disse…
Eu não assisti a série, mas minha filha Giovana assistiu. Disse: Mããããe, vc precisa assistir essa série! Ela estava impactada pela percepção das coisas "por dentro". Ainda não assisti, mas já tinha colocado na lista. Agora, depois dessa crônica, coloquei na categoria "urgência".
Veja!sua filha tem razão.
Albir disse…
Vou assistir. Trabalho com adolescentes há muitos anos e, por enquanto, o que sei sobre eles é que sempre surpreendem. E que precisam e merecem ser ouvidos.

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