FÉ, CORAGEM E PERNAS >> Albir José Inácio da Silva
“O que ela quer da gente é
coragem”, repetia Valentino para si mesmo na expectativa de que a frase de
Graciliano produzisse efeito sobre seu assombrado espírito. Coragem era o que
queria, era o que invejava, principalmente no novo colega de trabalho, o Rubão.
Valentino não tinha amigos,
cumprimentava brevemente, falava o necessário para a execução das tarefas. As
pessoas respeitavam quando ele evitava ambientes escuros, conversas sobre
mortos, demônios e demais entidades do mundo sobrenatural. Mas ele percebia
sorrisos de ironia e provocações disfarçadas nas conversas, e isso o
mortificava.
Valentino vinha de uma família de
medrosos. Na infância, as pessoas levantavam de madrugada para acender velas e
espantar os maus espíritos. Sentiu todos os medos da infância, bicho papão,
homem do saco, loura do banheiro, lobisomem, e outros que os adultos inventavam
para que ele ficasse quieto. Se não deu certo na ocasião, funcionou mais tarde.
Até das mulheres Valentino mantinha
distância. Elas levavam a pensamentos impuros, que viravam pecados e atraíam
demônios. Não ligava muito para pecado, nem sabia direito o que era, mas, de
demônios, queria distância. Nunca esquecia de Eva, a maçã e a serpente.
Catarse ou sublimação - digam os
profissionais psi – a verdade é que nosso herói gostava de leituras macabras.
Entre as preferidas estavam as da Confraria da Pá do Crônica do Dia – contos
que assustam até os valentes. Alguns colegas se divertiam trazendo-lhe esse
tipo de literatura só para vê-lo sofrer. Outros advertiam que aquela leitura
agravava seu problema. De qualquer modo, ele não conseguia ficar longe dessas
histórias. Insone, sofrendo, roendo as unhas, mas lia.
O ódio por Rubão começou no
momento em que foi apresentado, porque ele era o seu contrário. Falava muito,
tocava as pessoas, olhava nos olhos, chamava todo mundo de irmão, companheiro,
camarada. Oferecia ajuda, escolhia os trabalhos perigosos que os outros tinham
medo: entregas em áreas de risco, casas assombradas, em frente ao cemitério.
Além de matar baratas e correr atrás de ratos quando a maioria já estava sobre
as cadeiras.
Apesar da aversão inicial,
Valentino ficava fascinado com os discursos do novato sobre suas intrépidas
façanhas. Além disso, o temperamento afetuoso e o tratamento cordial foram
vencendo as barreiras defensivas e o veterano se rendeu à aproximação.
Para passar do ódio à admiração
bastou ouvir do Rubão a sua história de medo e superação.
Rubão tinha, antes da libertação,
a mesma vida sofrida de Valentino. Insônia, pesadelos, medo de escuro, dores de
cabeça, agressividade, apatia, tremores e a sensação de estar sendo seguido.
Até que, por insistência de sua mãe, participou de uma corrente de oração que
mudou a sua vida.
Valentino não descolou mais dele.
Bebia suas palavras e seguia-o por todos os lugares. Virou seu fiel escudeiro.
Levava sua pasta e ia lhe passando os folhetos, livros e anotações usados nas
palestras. Não tinha mais medo.
Também parou com a “literatura do
mal” e passou a ler apenas os textos sagrados que o outro lhe entregava. Não
que ainda ficasse assustado, mas é que tinha coisas mais importantes para ler.
Rubão fazia reuniões nas
comunidades mais perigosas, nas encruzilhadas para espantar os maus espíritos e
subia o monte toda semana liderando os fiéis no que chamava de batalha
espiritual. Dava gosto vê-lo desafiando as hostes do mal e brandindo como espada
o livro santo.
Valentino se sentia protegido em
sua presença. Quando crescesse, queria ser igual a ele - dizia com admiração e
reverência.
(Continua em 28/04/2025)
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