POR UM POUCO DE PÃO E LEITE 1a parte >> Zoraya Cesar
A estrada era de terra crua, irregular, cheia de pedras e buracos. Carroças chacoalhavam tanto que perigava o leite virar manteiga. Ladeada por um bosque denso e úmido de um lado, e um lago escuro, misterioso e gelado do outro.
Havia sinais na estrada para que os incautos neles não se aventurassem, pois eram lugar de seres míticos e perigosos, que não devolviam os humanos que ousassem penetrar em seus domínios. Os poucos que escapavam nada falavam e sumiam na vida, estranhos e perturbados.
E foi do lago que ela saiu, magra e faminta. Parecia um peixe, quase só espinha e escamas. Tinha os cabelos cor de cobre eriçados e duros como fios energizados. De tão empapuçado e enrugado seu rosto, os olhos eram duas frestas estreitas, das quais saía, ocasionalmente, um brilho fortuito e assustador. Os lábios estreitos formavam uma única linha, que afundava na boca desdentada. Arrastou-se até a beira da estrada e esperou.
Pouco tempo depois, ele saiu do bosque. Um pássaro descolorido, de grandes asas caídas e tristes. O bico adunco revelava um passado de rapina, mas, agora, uma ave velha e cansada.Mulher e ave, caídos de seus mundos, buscando um abrigo.
Caminhavam lenta e dolorosamente. De vez em quando sentavam-se à beira da estrada, as garras gastas do pássaro na perna ossuda da mulher, que lhe passava a mão nodosa de unhas sujas em sua cabeça.
Era alta noite quando chegaram à fímbria da aldeia, e lá ficaram. Os cães das proximidades ensaiaram um coro de uivos de saudação, mas a mulher emitiu um pio de coruja de sangue, e eles se aquietaram, respeitosos.
A aldeia era bem cuidada e mimosa. Cada casa de uma cor, todas com jardins floridos e enfeitados, iluminados alegremente por lamparinas de diversas formas e tamanhos. Nos fundos, algumas tinham galinheiros; outras, hortas; se houvesse alguma vaca leiteira, àquela hora já estaria deitada em seu feno. A aldeia era pequena, uma rua apenas, as casas espaçadas. Parecia, mesmo, um lugar de conto de fadas.
(E contos de fadas não faltavam ao lugar.)
A madrugada deixou orvalhos gelados e brilhantes para o amanhecer. O primeiro galo cantou, exortando os camponeses ao café e ao trabalho.
A mulher ajeitou os trapos que lhe recobriam o corpo escamoso, botou o pássaro no colo e entrou. O cheiro de pão quente e leite fervido tomava conta do ar, penetrando a pele, aquecendo as almas, espantando a aragem fria.
Foram olhados com espanto seguido de um certo asco e desprezo. Criaturas caídas!A mulher, no entanto, talvez movida pela fome e pela preocupação com o companheiro, não fez caso da evidente repulsa que causava.
- Que as fadas lhe deem a sorte que merece, cara senhora.
A ‘cara senhora’ olhou a mulher de alto a baixo, indisfarçadamente. Que ser bizarro! A pele era fina, e parecia feita de pequenas escamas e ela estava tão maltrapilha! E aquela ave, então? Já vira melhores dias. Parecia uma galinha velha que nem pra panela servia. A ‘cara senhora’ resmungou um bom dia, e deu-lhes as costas. Tinha mais o que fazer que dar atenção àqueles seres.
A Meah-Yara apertou o pássaro nos braços e soltou um único e longo suspiro, numa fumaça espessa que logo se dissolveu no ar. Mas a ‘cara senhora’ não viu.
Andou, andou, andou até a segunda casa. Havia um homem gordo e pançudo podando flores. A seu lado, uma mesa com pão e manteiga, os quais ele comia aos bocados, de tempos em tempos.
- Gentil homem, que as fadas lhe convidem a dançar, saudou a mulher com o pássaro.
O rubicundo personagem olhou para ela com desprazer. Nunca deixara um pote de mingau sequer para as entidades do campo, era muita audácia daquela mulher horrenda bater à sua porta. Se ainda fosse bonita, como algumas são! O homem arrotou e continuou acintosamente seus afazeres, como se ninguém ali estivesse a lhe pedir um naco de pão.A ave, mal levantando a cabeça, crocitou fracamente, e de seu bico caiu uma gota cor de ferrugem. Mas o “gentil homem” não viu.
Em todas as casas, a cena se repetia. A Mearah-Yara saudava com a benção de sua espécie e recebia em resposta desprezo, descaso, indiferença. Ninguém a agradecia pela benção preciosa nem lhe oferecia uma xícara de café ou leite, um pouco de nata, nem mesmo uma côdea de pão ou biscoito de viajante, um reles copo de água. Violaram solene e desgraciosamente a rígida lei da hospitalidade que regia o lugar, como todos sabiam tão bem.
Afinal, uma Meara-Yara decaída não teria poderes suficientes para lhes favorecer em troca de um pouco de leite, muito menos fazer-lhes mal. Há tempos que não aparecia uma das divindades da natureza e, quando aparecia, era ‘aquilo’? E aquela ave estropiada? Como ela deixara seu animal de poder ficar daquele jeito? Descuidada. Que voltasse de onde saíra ou procurasse abrigo em outro lago.
(Em todas as casas em que foram recusados, ora ela, ora o pássaro, deixavam sua marca. Mas ninguém reparava).
O dia estava quente; a estrada, escaldante. O sol caminhava indiferente pelo céu sem nuvens, fazendo a pele da mulher brilhar lugubremente. O pássaro mal respirava. O destino deles parecia inescapável: tarde demais para regressarem, feneceriam no meio do caminho; ademais, tinham uma pena a cumprir antes de terem permissão de voltar ao lar.Ao entardecer somente chegaram à última casa, exaustos, desiludidos, desesperançados. Iam morrer longe de seus pares.
A última casa parecia a mais rica de todas. A Mearah-Yara decaída aconchegou o pássaro, agoniada. Se nas casas mais humildes nada conseguira, que diria naquela? Precisava tanto de ajuda, pelo menos para seu companheiro.
Duas vacas mugiam ao fundo, galinhas cocoricavam, empoleiradas e satisfeitas. E um casal de gansos! Gansos? Os únicos animais domésticos que não a temiam. E as flores? Diferentemente das que vira pelo caminho, estas eram dedaleiras, lírios do campo, campânulas e outras, a maioria venenosa. Ela percebeu a quem pertencia a casa. Definitivamente, não seria bem-vinda ali.Os gansos começaram a grasnar ruidosamente e uma mulher velha, muito velha, abriu a porta e foi ao encontro deles. Tarde demais, pensou a Mearah-Yara, tarde demais.
.... continua dia 25 abril
Comentários
Assim, já que tenho enfrentado dificuldades para dormir, gostaria muito de saber qual é o truque que você usa para chegar ao sono, em meio à criação desses universos ficcionais permeados de criaturas fantasmagóricas e maldições eternas.
Esquece, companheiro, você abriu as portas do inferno, sono já não lhe pertence!