Salomé >> Alfonsina Salomão


“Você destruiu nossa família”. Não aguentava mais ouvir estas palavras. Não aguentava mais a injustiça que elas continham. Nem o peso que carregavam, que se depositava nos seus ombros e enrijecia cada músculo das suas costas. “Se ao menos eu conseguisse chorar”, pensava, intuindo que uma enxurrada a ajudaria a liberar um pouco da carga. Mas parecia que, de tão grande, o choro não chegava. Quando criança, Salomé tinha o choro fácil. Qualquer coisinha as lágrimas escorriam. Agora descobria que até para chorar era preciso leveza. Suas lágrimas haviam sido substituídas por um aperto no peito, um nó na garganta que doía quando engolia a própria saliva.

 

Pensava nisso enquanto observava a brasa do cigarro. Gostava do barulhinho que fazia ao puxar o objeto. Depois ficava olhando a fumaça deixar sua boca e dançar nos ares, livre, etérea. Apreciava estas qualidades, esperava voltar a tê-las um dia. O cigarro tinha vindo com o divórcio. Sentia-se um pouco patética por começar a fumar naquela idade, quando os amigos se felicitavam por terem conseguido largar o vício. Mas este sentimento era pequeno se comparado ao alívio que o gesto trazia, a tontura da baforada e o relaxar dos músculos que a faziam esquecer as chatices cotidianas. Enfim aprendera a conceder uma pausa a si mesma. A não fazer absolutamente nada. “Os não fumantes jamais conhecerão esta sensação”, considerava. Pois ninguém pegava alguns minutos do dia para simplesmente ficar mirando o horizonte. Até meditar requeria mais esforços do quê fumar, já que exigia preparação e concentração.

 

Salomé, que durante anos tivera uma prática regular de meditação, não conseguia mais ficar sentada no chão, imóvel, prestando atenção no espaço entre a inspiração e a expiração. Jamais admitiria, mas uma parte de si sentia que havia sido traída. Que, se ficara tanto tempo num casamento ruim, foi porque todos os dias conseguia encontrar paciência e contentamento na prática da yoga. Era como se todos seus esforços para ser uma pessoa serena, um ser humano evoluído, a houvessem anestesiado, fazendo-a suportar o inaceitável.

 

“Teria sido melhor se tivesse feito como todo mundo...s bebido, fumado e mandado tudo pros ares na hora certa”, concluía, amarga. Mas antes tarde do quê nunca. Agora se entregava aos maus hábitos com prazer, redescobria as delícias do chacra básico. “A iluminação ficará para a próxima existência”, deixou escapar em voz alta enquanto esmagava o toco de cigarro no cinzeiro, antes de pôr os sapatos e sair para mais uma noitada.

Comentários

sergio geia disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
sergio geia disse…
Essa sua reflexão sobre o instante de fumar. Interessante. Não fumo. Mas penso igual.
Nadia Coldebella disse…
As vezes a gente chora por dentro, né? É tanta anulação que não dá pra se desanular com calma. Nesse caso o cigarro é um ótimo contentor, pelo menos faz a pessoa se segurar por 5 minutos, as vezes o tempo certo. Mas não sei bem se isso passa, essa sensação de "porque não decidi antes?". Boa sorte para Salomé!
Zoraya Cesar disse…
Não saber qual a maldita 'hora certa' é uma praga q nos assombra pela vida, se deixarmos. Que Salomé nao se deixe assombrar por ela!
Albir disse…
Muito bom, Alfonsina!
A anestesia é ótima, mas nos impede de reagir.

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