SANTA CHAMUSCADA >> André Ferrer

Foi no alto da Vila da Colina e Luís Bernardo assistiu a tudo, naquela tarde, do sobrado do seu pai. Com a esposa, passaria o final de semana em Terracota. A fumaça negra era visível da entrada da cidade.

A escola queimou rápido, mas a reconstrução arrastou-se por quase dez anos. Um prefeito substituiu outro até que um deles chegou ao poder graças à sua longa e propalada militância na paróquia — forma das mais apelativas de se conseguir votos ao lado da troca de favores e da nota enroladinha. Empossado, o carola deu materialidade à promessa. Materialidade e concretude. Uma concretude que custaria tanto aos cofres públicos que, inevitavelmente, seria notada pela oposição.

À distância, Luís Bernardo acompanhou o “caso da porta”. Uma porta de escola. Uma porta simples de madeira que foi adquirida pela bagatela de dezoito mil reais. Tudo na conta do contribuinte que votou num confiável devoto.

Mais ou menos na época das investigações, Luís Bernardo foi a Terracota porque se encontraria com um amigo de infância. Tinham estudado juntos. O amigo disse que estaria no Serra Negra às três horas da tarde do sábado. Luís Bernardo reclamou. Ele não gostava de bares, mas a esposa deu argumentos. Afinal, era um velho amigo. Não se viam desde o término do ensino médio.

O pai de Luís Bernardo foi um habitué do Serra Negra. Por isso, Santos reconheceu o médico de primeira. Fez questão de levá-lo até a mesa de Carlos.

— O seu amigo está aqui — disse o dono do bar. — Doutor. Fique à vontade.

Santos deu meia-volta. Quando estava no balcão, Carlos gritou como nas velhas partidas de tênis de mesa.

— Mais duas garrafas de cerveja e um copo.

Luís Bernardo disse:

— Água com gás e limão para mim Santos.

— Como assim? — fez Carlos. — Você não bebe?

— Não.

Dois homens entraram no bar que estava quase vazio. Apenas um casal e um homem ocupavam mesas do salão de Santos àquelas horas. O dono do bar aproximou-se por detrás do balcão. Os dois homens estavam ansiosos. Queriam mostrar algo no smartphone. Santos pediu que esperassem. Foi levar as bebidas para Carlos e o doutor.

Em silêncio, Santos depositou a cerveja, a água, o copo e o limão cortado na mesa. Apenas sorriu e voltou para o balcão.

— É por causa de religião? — disse Carlos.

— Não. Simplesmente, não gosto de beber.

— Entendi.

Houve silêncio entre eles. Carlos olhou para o balcão. Santos e os dois homens assistiam a algo no smartphone. Sérios como se o vídeo dissesse respeito a eles próprios de alguma forma.

— Hum. Boa cerveja! Tem certeza?

— Absoluta.

IMAGEM: Pexels

A tensão logo diminuiu. Carlos e Luís Bernardo falaram sobre os velhos tempos. Havia muito o que recordar. Os namoricos. As festas. Os campeonatos de tênis de mesa. O médico torceu para que Fabrícia não aparecesse na conversa. Um amor platônico. Tornara-se, nos anos de 1990, um comboio de negativas. Carlos passou ao largo. Ainda bem. Aquilo, de fato, era vexatório. Ele recordou a menina que tinha voz estridente. Luís Bernardo disse que a chamavam de galinha d’angola e eles riram. O riso de Carlos chamou a atenção dos três homens que estavam no balcão ainda sérios. Luís Bernardo teve a impressão de que Santos queria rir quando olhou para ele. Então, Carlos parou de rir. Sua expressão ficou emocionada.

— Muito bem — disse. — Você age de um modo despretensioso. É médico. Sabe disso, mas não transparece o tempo todo como outros doutores que eu conheço. Percebi quando você recusou a cerveja.

— Como assim?

— Em relação à bebida, qualquer um teria aceito só para não contrariar. Para ser simpático. Para socializar. Para não ser disruptivo, como dizem, disruptivo. Uma palavra da moda. Escute: hoje em dia, ninguém contraria ninguém. Muito menos um homem se põe fora do rebanho e recusa cerveja.

— Rebanho!

— Manada.

— Ora! Eu fugi da manada?

— Para os dias de hoje, um grande feito.

— Ora! Meu amigo. Eu só fui sincero. Nada mais.

— Um grande feito — disse o amigo. — Santos! Mais uma para mim.

Naquele momento, o dono do bar se despedia dos dois homens. Assim que eles cruzaram a porta, o semblante de Santos mudou. Ele começou a rir. Estava claro. Aquilo tinha a ver com os tais homens e com o que assistiam no celular.

— Ainda não vi tudo nesta minha vida! — disse o dono do bar. Trazia outra cerveja para Carlos.

O médico apoiou o queixo nos dedos. Disse:

— O que foi?

— Esses dois que saíram.

— O que houve?

— Acham que eu sou idiota como eles.

Carlos encheu o copo, bebeu e limpou um lábio com o outro. Disse:

— Por que não conta tudo velho? Sente-se um pouco.

— Sim. Aqueles dois pertencem a um grupo de orações da igreja. Uma vez, eles pediram para rezar o terço aqui no bar. Foi na época do Natal. Eu deixei. Nunca fui carola, mas respeito. Enfim, eu conto isso para servir de introdução. Para que vocês saibam o tipo de gente que eles são. A história propriamente dita, que tem a ver com o vídeo, precisa dessa informação.

— Percebemos — disse Carlos.

— Era um vídeo triste? — fez o médico. — Pois eu tive a impressão de que era e, também, tive a impressão de que você segurava o riso Santos.

— Segurava. Quase gargalhei na frente deles por causa da cara de pau do prefeito. Vou mostrar o vídeo para vocês.

Um homem magro e alto apareceu na tela do celular. Todo curvado, tinha dentes amarelos. Uma grande e pesada cruz pendia do seu pescoço. Era o prefeito. Ele segurava uma imagem bicolor. Metade branca e metade preta, a santa tinha sobrevivido milagrosamente ao incêndio da escola. Exato! A escola que, agora, exibia portas caríssimas. E o prefeito vinculava a sua resiliência administrativa com a resiliência do gesso milagroso que saíra ileso das chamas. Comparava a sua alma ilibada com as vestes que se conservaram brancas. Jogava luz nas trevas de uma provável comissão parlamentar de inquérito.

Luís Bernardo até achou trivial. Essa gente é assim mesmo. Sempre atrás de um milagre para safar o seu caráter imundo. Carlos disse:

— Tem uma coisa.

— O que foi? — Santos perguntou.

— Aqueles dois queriam algo mais.

— Sim.

— O quê?

— Amanhã, todos vão rezar um terço para a santa que escapou do incêndio. Na verdade, será um comício. Todo mundo sabe disso. Querem que eu compareça.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
"Empossado, o carola deu materialidade à promessa. Materialidade e concretude. Uma concretude que custaria tanto aos cofres públicos que, inevitavelmente, seria notada pela oposição." Já comecei rindo aqui!
Mto bom, Ferrer! Vc trocou o estilo e manteve a essência. Agora, fato é que exijo continuação! Pelo menos na ficção quero ver um prefeito chamuscado!
Nadia Coldebella disse…
Eu adorei!
A sutileza da corrupção exposta nas redes, a tristeza e perfídia do ato virando chacota e, no final, a hipocrisia tão concreta qto as paredes super valorizadas da escola!
Já te disse, né? Vc é um mestre...
Albir disse…
A perniciosa ligação entre fé e governança continua fazendo estragos, explorando muitos e locupletando alguns.

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