SONG >> Carla Dias


Trafega, de um lado a outro da casa, em ritmo de véspera de feriado, tropeçando em tapetes-lombadas, reduzindo a velocidade ao ter de lidar com eventuais móveis fora do lugar. Ao longo da sinuosa estrada-corredor, espia cenas estampadas nas paredes, amparadas por molduras diversas, apontando uma variedade desviada das imagens em fotografia. Em um impulso, desrespeita o semáforo-varal de luzes — protagonizadas por lâmpadas Led —, sinalizador da passagem da sala de estar para a varanda.

Gosta de olhar nos olhos da cidade insinuante, de deslumbrar solitários com o seu concreto acolhedor de histórias. Ela acha isso melancolicamente atraente. 

Manobras arriscadas são inevitáveis. Para escapar de acidentes, percorre os cômodos, descalça, pois é dada a tropeçar nos próprios pés, ou enroscá-los em objetos do caminho. Tocar o piso frio com eles a ajuda se acomodar no espaço e a despistar pensamentos anestesiantes, seja por valor ou irrelevância, de mantê-la inerte, no meio da cozinha, segurando um copo vazio; ancorando um corpo desabitado de impulsos. 

Song não fala mais como em tempos idos. Tudo nele se tornou miúdo, arrastado, inspiração para desvios de rota nem sempre favoráveis. Não raro, ela protagoniza uma verdadeira coreografia, apenas para chegar ao outro lado do recinto sem atropelá-lo. Tomada por frenesi imodesto, e pela necessidade de mudar de rota, a fim de atender as desnecessidades dele, acontece de desalojar cadeiras, esbarrar em vasos, derrubar pertences.  

Song não continua o mesmo, nem a música consegue defendê-lo dessa realidade. Mas a afinidade no gosto musical é equalizadora de desafios. Houve quando, em vários momentos, subiu no sofá, gritou em cachorrês, abanou o rabo, e derrubou coisas, até ela trocar o disco. Trocou muitos discos, alguns, ele tinha razão, foi melhor abandonar. Eram apenas trilha sonora para desapegos. 

Agora, basta um olhar, e ela entende. Deixa as tarefas para depois, caminha até a vitrola, coloca o disco preferido dele, e dela também. Então, faz a casa encher os pulmões de som. 

Cantam juntos, ele em cachorrês precário; ela em idioma esmirrado, decidido a se envolver com o desafinar de sua voz.

Song respira fundo, fisgando alguma memória, o olhar dele mostra ser das agradáveis. Ela respira fundo ao pensar sobre fins: do dia, dos sonhos, da série, dos projetos, de si. 

The Long and Winding Road… 

Ele adormece, e, ultimamente, ela tem pensado ser pela última vez. 

O Song não continua o mesmo, e isso não é ruim, apenas é.


carladias.com.br

Comentários

Nadia Coldebella disse…
É como se, aos poucos, Song a estivesse preparando. Que bom que ela tem a música.
História terna e triste essa sua, como um prenúncio de despedida!
Gde Bjo
Jander Minesso disse…
Vira e mexe, estou com a Frida e me pego pensando nesse futuro inevitável. Mas a alternativa a isso, em todas as instâncias, é deixar de viver, né?
Zoraya Cesar disse…
Que texto absoluta e absurdamente belo. Pungente. Delicado. Triste. E necessário. Porque o que mais precisamos é de amor. E essa é uma belíssima hitória de amor.
Albir disse…
Até a separação, a morte e a dor ficam belas quando Carla trata delas.
Soraya Jordão disse…
Quanta sorte desses dois terem um ao outro. Lindo.

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