O ÚLTIMO PARENTE VIVO - 1ª parte >> Zoraya Cesar


A ferroviária estava, literalmente, às moscas - que rodeavam, ávidas e incansáveis, uma lata de lixo aberta e alguns dejetos perto da lanchonete. May teve uma certa inveja: elas, as moscas, ao menos, tinham o que comer.

Guichês fechados, plataformas vazias, iluminação suficiente apenas para que a pessoa não caísse entre algum vão. May sentia arrepios, e não só por conta da chuva miúda e insistente que penetrava pelo casaco, pelos poros da pele e enregelava seus ossos. Estava sozinha na plataforma. No turno da noite, não havia funcionários e todos os passageiros tinham ido embora. 

A marquise era curta e estreita, metade do corpo de May continuou a pegar chuva. Será que tinham esquecido dela? Se demorassem muito, em vez de ir para a casa de Tia Vance, melhor seria ir direto para o hospital, me internar com pneumonia, divagava.

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O carro chegou tão mansamente, que ela se assustou quando ouviu uma voz cavernosa perguntar Srta. May? Sim. A porta de trás abriu. Só podia ser o carro enviado por Tia Vance. E quer saber? Se não for, que se dane. Estou com fome, com frio e exausta. Se ficar aqui vou morrer de qualquer jeito, servirei de repasto para as moscas. May pegou sua valise e entrou no veículo.

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O interior estava um breu, e cheirava a formol com couro velho. May sentiu enjoo, abriu a janela, meio tonta. A única coisa visível era o olhar de soslaio que o motorista lançava para ela de vez em quando. Boa noite, senhor. Ele grunhiu de volta e nada mais disse.

A estrada era ruim, e a chuva que caía há dias amolecera a terra; o carro patinava perigosamente a todo instante. May teve ímpetos de pedir para desacelerar, mas estava cansada demais e com um pouco de medo do sujeito; ademais, qualquer distração poderia ser fatal. E a fome estava apertando.  E ela tinha outras coisas para se preocupar.

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Depois de um trajeto longo e tenso, chegaram.

Por trás da cortina de chuva torrencial, May viu uma mansão em estilo vitoriano, que poderia até ser bonita não fosse uma certa, como direi, lugubridade. As luzes brancas amortiçavam ainda mais o tom cinza lápide velha das paredes, e as janelas arredondadas e escuras pareciam olhos tristes, encimando canteiros de urzes malcuidadas.

Teve vontade de voltar, mas o motorista jogou sua bagagem nos pés da escada e partiu, espirrando lama por todo lado, inclusive no vestido de May. ‘MEU MELHOR vestido’, gemeu ela. Todo castigo pra pobre é pouco. 

Pobre, paupérrima, talvez não, mas bastante, digamos, remediada. Aceitara o convite inesperado daquela tia distante – da qual nem lembrava mais a existência – para, ao menos por alguns dias, comer e dormir bem, sentir o doce perfume da riqueza. E quem sabe, assim, mudar sua sorte?

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Essa tia pertencia a um ramo afastado da família – sanguíneo, afetivo e geograficamente afastado. Era como uma névoa, raramente mencionada. May não tinha outros parentes que pudessem explicar direito quem ela era. Até porque fazia décadas que ninguém ia lá. Ou por falta de convite, ou por causa do cheiro de mofo que tresandava a casa toda, ou pela distância... Ou porque corria a lenda de que os parentes que a visitaram tiveram o estranho e desagradável hábito de morrer bem pouco antes ou bem pouco depois de voltar para suas casas. Não sei.

May também não, e nem queria saber. Não era chegada a superstições e estava precisada de um pouso e comida grátis. Não tinha onde passar as férias e, mesmo que tivesse, não podia pagar. Kot precisara ficar internado na clínica veterinária e seu pouco dinheiro foi revertido para o bem-estar do bichano. Na casa da tia, ao menos, não gastaria com comida, luz, gás, essas miudezas de gente pobre.

May, cansada, com fome, parecendo um rato molhado, mas mantendo a falsa pose de parente pobre que está muito bem, obrigado, bateu à porta.

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Tia Vance era uma mulher magra, de compleição ossuda, sem peito, sem quadril; seu pescoço longo e enrugado como o de uma tartaruga saía pela gola do vestido reto, marrom, sem estampas. Não usava óculos nos olhos vivazes e, May não reparou, também, maliciosos. Os dentes, ligeiramente amarelados e acavalados. Tinha mais rugas no rosto que mosquitos nos charcos – era muito velha, mas impossível precisar-lhe os anos. Andava ereta, a voz baixa e fraca, mas firme. Pelas histórias, aquela mulher deveria ter mais de cem anos. Tolices. Ninguém vive tanto assim com os dentes em ordem e visão perfeita. Na certa, calculou May, é filha ou neta da Tia Vance de que ouvi falar quando menina.

(Tia Vance apreciava a parenta distante. Jovem, bonita, saudável. Serviria, com certeza).

May subiu para o quarto ao som do ranger resmungão da escada. Nem tomou banho, apenas trocou de roupa e desceu para o jantar. A dona da casa escusou-se por não a acompanhar. Gente velha gosta de dormir cedo, espero que não se importe. Desde que tivesse comida, May não se importaria, nem um pouco. Sentiu saudades de Kot, deitado em seu colo, esperando pedacinhos de comida. Mas, enfim, ele estava bem cuidado, o negócio era ter fé e esperar.

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Banho tomado e alimentada, preparou-se para dormir - no dia seguinte seus pensamentos estariam mais em ordem.

As urzes do jardim
estavam sem viço,
 talvez sem vida
O quarto parecia um cenário de filme antigo. O janelão triste dava para um jardim árido e feio. Cama com dossel, paredes acarpetadas, chão de tábuas largas, e um criado-mudo. Preferia esse nome a ‘mesa de cabeceira’. Achava engraçado.

A decoração a deixou deprimida. O céu estava encoberto e, embora a chuva tivesse cessado, não havia aquele cheiro bom de terra molhada (petrichor, ela lera em algum lugar), mas de terra podre. O ar estava parado e denso. Experimentou a cama. Mole demais, ela afundava entre os lençóis. “Vai ser uma longa noite”, pensou. Tentou ler, mas a lâmpada do quarto era tão fraca, que desistiu. Colocou o livro e a foto de Kot em cima do criado-mudo e fechou os olhos.

Apesar do mofo, da cama desconfortável, dos pensamentos melancólicos, o cansaço foi vencedor. Dormiu.

No mais profundo do sono, em plena madrugada, foi acordada por...

Continua dia 29 de março.


Comentários

Antonio Fernando disse…
Chega logo, semana que vem, ou eu como todos os dedos!!!
Anônimo disse…
Quando a coisa prometia "animar", parou tudo. Que dureza essas crônicas em capítulos!
branco disse…
como uma ótima rotina dela autora, o cenário e personagem estão colocados, como peças de um belo jogo de xadrez, aguardemos pois, os movimentos.
ahhh... a malvada me fez lembrar um personagem de walt, não Whitman, disney.como diria Spock..."fascinante."
Marcio disse…
A sobrinha estava se arrependendo de ter ido à casa da tia, bem antes de chegar lá.
O que a fez perseverar nesse caminho?
Será que a comida na casa da tia era tão bem comentada entre a família?
Erica disse…
Isso está me cheirando a estória de João e Maria.... sem o João hehehe
Jander Minesso disse…
Lembra muito a história de uma tia minha de Barbacena. Nunca visitei e não visitarei, porque vai que você usou ela como referência da personagem.
Soraya Jordão disse…
Melhor manter distância dos convites de família...
Anônimo disse…
O que essa tia vai aprontar? André Ferrer aqui.
Albir disse…
Já tenho o pesadelo para esta noite. Só que a angústia não estará no peito de May, mas na alma deste pobre leitor. Vou dobrar o propofol.
Zô, você é muito talentosa pra fazer a gente entrar na história e depois deixar a gente aflito, com medo do que vai acontecer com o pobre personagem...rs. Aguardando ansiosa para conhecer o destino de May!
Maria disse…
Ai, ai, ai.... que suspense. Estou aqui esperando o que a fez acordar.
😉

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