JANTAR DE CASAMENTO >> Zoraya Cesar

Comecei lavando pratos. Não quebrava nenhum! Aí me engracei com o ajudante de cozinheiro e subi de posto. Eu levava jeito pra coisa.

Fui galgando postos (e outras coisas também, vocês não sabem o quanto é difícil pra uma mulher fora da flor da idade subir na vida), juntanto dinheiro, até realizar meu sonho.

Tenho um food truck. Coisa modesta, numa ‘área de risco médio’, digamos, num subúrbio que nem vale a pena dizer o nome.

Mas esperem, deixem-me contar desde o início.  

Eu era bem apaixonada por ele. Quando nos casamos, ou melhor, juntamos (se bem que, amigado com fé, casado é, não é?) eu era jovem, linda, alegre, loura. Estava muito orgulhosa de mim. Trabalhava como faxineira durante o dia e estudava à noite. Cuidava e botava dinheiro em nossa casa. Meu homem não tinha sorte com emprego. Mas não lhe faltava cerveja gelada, comida e cama quentinhas. Ele tocava violão pra mim. Nada como o amor da juventude. Não é?

Os anos, no entanto, não entendem de amor. Minha vida foi ficando sofrida, sabe? Vendendo o almoço pra comprar a janta. Eu estava maltratada e envelhecida. Não podia comprar uma porcaria de um esmalte, um mísero batom. Meu homem me perseguia no trabalho, querendo dinheiro. Em casa que não tem pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. Ele me batia. Pedia perdão. Eu cedia. Ele me batia. Pedia... num círculo vicioso infinito. Tudo o que eu queria é que ele tomasse jeito.

O jeito que ele tomou foi me botar pra fora de casa, da minha casa!, pra se enrabichar com uma rapariga novinha, novinha.

Saí, o rabo entre as pernas, a vagina seca, aparência de megera e um coração humilhado. Peguei o dinheiro que escondi na casa de uma das patroas e sumi.

Cortei os cabelos bem curtos, pintei de preto, fiz uma tatuagem e voltei a usar maquiagem. Nunca recuperei o viço e a fé, no entanto.

Meu food truck era simples, mas correto. Pobre gosta de coisa boa, não gosta de porcaria não. Minha comida era variada e bem feita. E eu tinha uma mão pra brigadeiro! Eram disputados a tapa. Às 6as eu fazia batata frita de graça pra acompanhar os pratos.

Dinheiro entrava aos pouquinhos, mas entrava. Eu tava feliz. Continuava com a aparência acabada, mas tava feliz.

Enfim, vida seguia.

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O sujeito era um chefete de último escalão no tráfico. Tipo bandido-família, crente, que não admitia desfeita com morador. Dava-se ares de importância, mas era um zé-mané. Gostava da minha comida. Vinha com um guarda-costas alto e pesadão. Dava gorjetas generosas, mostrando as notas para todos verem.

Eu ficava meio cabreira. Esmola demais o santo desconfia. Se ele quisesse guardar drogas no meu food truck, juro que largava tudo pra trás de novo.

Quando ele pediu para conversar comigo, minhas pernas bambearam e eu quase chorei.

Mas não.

Ele veio na humildade, perguntando se eu aceitaria fazer o jantar de casamento da irmã mais nova dele. Um cardápio simples e caseiro, para um casamento simples e caseiro. A quantia que ele ofereceu daria para comprar dois food trucks. Quer saber? Tô ficando meio cansada de tanta labuta. Quero aposentar.

Aceitei.

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O galpão do jantar era quente como um inferno em brasa. Os ventiladores não davam conta de afastar o suor do rosto e da roupa dos convidados - meliantes do baixo clero e suas mulheres, amantes, capanguetes.

Estava doida para ver a noiva. Adoro noivas, são sempre tão bonitas e felizes! (Confesso que senti uma dorzinha no coração. Esse foi um trem que não peguei. Desci na estação errada e agora estaria para sempre atrasada.)

Quando ela chegou, desejei sinceramente que fosse muito feliz! 

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Primeiro baque da noite

Ela era feia, feia, feia. O corpo disforme e balofo parecia sofrer dentro do vestido branco apertado, que a fazia parecer um bolo de noiva esmagado pelas mãos e saindo por entre os dedos. O rosto era uma bolacha cravada de espinhas que a maquiagem não disfarçava. Um leve buço escuro acima dos lábios, o nariz grande, a boca pequena.

Olhava com timidez para todos os lados e para baixo, como se pedindo desculpas por existir. Tive vontade de abraçá-la, dizer para levantar a cabeça, enfrentar o mundo. Algo em mim gostou dela. Não era pena. Vá entender.

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Segundo baque da noite

O noivo.

Sim, é quem vocês estão pensando.

Um meia-idade bonitão, apesar da barriga e das rugas. O mesmo sorriso largo, olhos brilhantes. O cabelo e a barba grisalhos eram um charme à parte. Deus às vezes dá asa a cobra.

O mequetrefe tirara a sorte grande. Conseguira seduzir uma coitada mais velha que ele, que podia oferecer dinheiro e segurança. Tudo o que precisava fazer era continuar seu teatro de marido amoroso e, de vez em quando, cumprir suas funções maritais.  

Recolhi-me à copa e de lá não mais saí. Eu estava irreconhecível, em nada lembrava a garota loura, magra, pele louçã e vivaz que eu fora, mas porque dar chance ao azar? Será que aquela peste iria me assombrar o resto da vida?

Decidi que pegaria minha parte do pagamento e recomeçaria a vida em outro lugar o quanto antes

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Uma semana depois a noiva apareceu, sozinha, no food truck.

Sentou (precisou de dois bancos). Tinha brigadeiros? Levei um prato com quase 20 docinhos e disse que era oferta da casa.

Estava ainda mais feia e, agora, não tinha mais o brilho da felicidade. Notei as sombras dançando em seus olhos, a curvatura amarga nos cantos da boca, as unhas mal feitas, o cabelo duro. Era eu há alguns anos. O maldito estava fazendo mais uma vítima. Ela só não sabia ainda.

Começou a conversar como se fôssemos velhas amigas.

Contou que era professora – tudo dentro da lei! - e conhecera o marido numa fila de mercado. Ele era tão engraçado, e não se importou com a aparência ou idade dela. O amor é uma coisa estranha, não é?, perguntou. É, respondi, é sim, a garganta seca.

Sei que não sou bonita nem nova, mas também tenho direito de ser feliz. Não é?

Tem, respondi, tem sim, a bile subindo para minha boca.  

E ele é um bom homem, me trata bem, não se incomoda de meu irmão ser... você sabe.

Sim, eu sei, a boca amarga. Sua burra! Ele vai te usar e te botar sempre pra baixo, você vai comer todos os brigadeiros do mundo até que um dia ele vai deixar de te procurar e dizer que a culpa é sua, e se um dia esse seu irmão idiota morrer você vai ser largada como um pano velho e sujo. Pega seu dinheiro e foge, foge pra uma ilha grega, talvez lá encontre um homem que valorize suas qualidades, sua doçura, inteligência!

Tudo isso pensei, somente. Não tinha o direito de estragar sua ilusão, não é? Se ela dizia estar feliz...

Ela comeu o último brigadeiro, agradeceu e foi embora.

Eu não podia mesmo ter feito nada por ela, não é? Não é?

 

 

Comentários

branco disse…
Diferente de tudo o que você escreveu antes, mesmo que o âmago, ou base, sejam solidamente mantidos. Diferente, mas não menos "saboroso". Gostei de um neologismo, a informalidade narrativa, que deixa mais leve um tema pesado. Diferente, mas ao lembrar de quem escreveu percebi e me disse: "- apenas desfrute!"
Anônimo disse…
Li o seu texto ávido por uma morte merecida. Não aconteceu, mas uma morte lenta ficou subentendida. Rsrsrs! André Ferrer aqui.
Maria disse…
Oi,Zo! Esse foi bem diferente, né? Você descreve bem as personagens. Eu visualizo claramente.
Bjs
Mary
Érica disse…
Peraeeeee! Não vai ter segunda parte?!
Ela morreu depois que comeu os brigadeiros?
Ela levou um brigadeiros envenenado pro mequetrefe?
Cadê os defuntos da história? Kkk
Marcio disse…
Que felicidade! Uma sexta-feira com texto inédito da Zoraya!
Bom, se Lady Killer vai ficar de parcimônia, este leitor não se escusou do dever de promover uma matança.
Fiquei imaginando uma continuação em que o traficante pratica um cunhadocídio, para acertar as contas com quem provocou tanta tristeza em sua irmã.
Acho que isso se chama síndrome de abstinência, não?
Fiquei um tempão sem uma crônica da Zoraya, aí comecei a ler já veio o gosto de sangue na boca.
Anônimo disse…
Começou essa crônica de uma forma diferente, até com pitadas de sexualidade. Mas apesar de não haverem mortes explícitas, ficaram no ar "mortes da alma"!
Jander Minesso disse…
Quem é rainha nunca perde a majestade, né? Bem vinda de volta, Zoraya!
Antonio Fernando disse…
Peraí, amiga. Vou ficar esperando a continuação. Não aceito tanta injustiça. Não tem como aparecer aquele gato do velho padre e dar um jeito no mequetrefe?
De resto, feliz de ler Zoraya de novo! Tudo de muito bom sempre, no desenvolvimento deste teu dom com as palavras!
Albir disse…
Muito bom, encantado aqui, emocionado, mas quando o cunhado vai pro micro-ondas?
Soraya Jordão disse…
Os anos, no entanto, não entendem de amor... Essa frase ainda está batucando em mim.
Zoraya Cesar disse…
branco - cumprimento com um aceno e um sorriso seu comentário delicado!

André - vc anda mto sanguinário kkkk

Mary - muito obrigada! saber q algum texto é visual, cinematográfico é a glória para quem escreve

Érica - amiguinha, te contaminei? vc nao era assim kkkkk

Márcio - hahaha, gosto de sangue na boca foi bom, vou usar. Síndrome de abstinência... hahahah. E todos os finais possíveis, vc sabe

Anônimo - isso! mortes na alma, exatamente. igualmente crueis. mas, essas, pelo menos, em alguns casos, sanáveis.

Jander - assim como a lord white, Jander, a vc, tb, aceno com a cabeça e sorrio, deliciada e tímida por seu cumprimento delicado

Antonio Nando - hahaha virou justiceiro tb? Vc é uma pessoa boa, faz isso nao kkkkk. Olhe, o Gato Preto do Velho Padre não faz mais essas coisas não. Isso ficou para a vida que ele tinha antes de adotar o Velho Padre.

Albir - HAHAHAHAHAHAAH, quequé isso, Dom Albir? Tô te estranhando!

Soraya - sim, ela embatuca mesmo né? Talvez pq a gente saiba disso sem nunca ter se dado conta.

A todos, muito obrigada pela leitura e pelos comentários!

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