CARTAS >> Carla Dias


O irmão gostava de usar o chapéu herdado do tio; a irmã, de cantar acompanhada pelas músicas do toca-karaokê, que o pai arranjou em uma troca, para divertir a família, mas acabou parte dos sonhos dela: tornar-se cantora. O mais novo, ainda às voltas com o aprender a dizer palavras que expressassem a urgência de sua fome, só parava o berreiro depois de receber um cafuné da avó, seguido por algum caldo ou, se tivesse sorte, o adocicado de alguma fruta.

De todos os colecionáveis, as cartas do avô sempre foram as mais visitadas, ainda que sob o protesto da avó, que nunca se recuperou do ser abandonada por ele.

As cartas traziam notícias de um mundo que a filha mais velha enfeitava com imaginados e raramente gastava com impossíveis. Durante a leitura silenciosa, conseguia escutar a voz do avô a dizer palavras que ela nem conhecia. A melhor amiga, que trabalhava na casa de um professor aposentado, a ajudava a encontrar significados em também aposentados dicionários.

Recebê-las amenizava esperas que ela nem mesmo sabia identificar, feito os acontecidos do longe, uma história ou outra que algum comerciante de passagem deixava escapar. Para proteger seus lucros, e manter os clientes, eles se esforçavam para respeitar a principal norma do lugar: não traga nem leve notícias. Ainda assim, sempre deixavam escapar alguma coisa.

Depois de muita discussão, os pais permitiram que ela recebesse as cartas do avô. A avó o maldizia, mas ainda com afeto. Acreditava que partida dele tinha a ver com ter conhecido o vocabulário dos boêmios, dos cultos, e, de acordo com ela, dos entendidos em se livrar da responsabilidade de criar uma família.

Todos os dias, o irmão colocava o chapéu herdado do tio, sujeito sumido há muito tempo. A irmã, acostumada a cantarolar antes do café da manhã, enquanto ajudava a mãe a ajeitar a mesa, emprestava a voz para as mesmas músicas que a avó e a mãe cantavam desde que tinham a idade dela. O mais novo, esparramado no colo da avó, sorria, porque sorrir ajudava a conseguir comida e afeto. Os pais organizavam a rotina dos seus, com esmero.

A avó torcia para que o avô tivesse encontrado o criador dele, algum deus pagão e manipulador, dos irresponsáveis e incapazes de ensinar o adequado às criaturas que trouxe à vida. Dizia isso com o coração desalentado, pois a ideia de o marido não pertencer mais ao mesmo mundo, partia o coração dela em mil tristezas.

O avô conhecia lugares, sabia de histórias, de outros tipos de música. Lembrava-se dele ao desanuviar das ideias, mas apesar do tempo da partida, ainda que ela fosse sua companhia de tamanho que lhe permitia enroscar em suas pernas quando se sentia ameaçada por algum bicho que vivia no quintal, nunca esquecera da voz dele.

Desde que ele partira, pra lá de décadas, ela recebia uma carta a cada dois meses. Era a rotina deles, a manutenção da conexão que não aceitavam romper. Folheia as cartas, cuidadosamente guardadas em uma pasta, como se fossem páginas de um livro. Tem chorado à toa ao fazê-lo. Há quase um ano, elas não chegam. O mundo se calou na voz de seu avô.


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Comentários

Soraya Jordão disse…
Senti saudade do que não vivi. Adorei.
sergio geia disse…
Há tantas delicadezas e passagens quem tão bem resumem essa coisa de viver no mesmo mundo e depois não... Lindo, Carla.
Jander Minesso disse…
O nó na garganta só foi aumentando.
Zoraya Cesar disse…
Gatilho acionado, tiro disparado, alvo atingido com precisão.
Eu e minha inocência em ler Carla Dias num final de domingo.
Coração apertado.
Albir disse…
"A manutenção da conexão que não aceitavam romper." - Carla e seus agudos poemas diáfanos!

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